Vice-presidente de Ação Pública da Fundação Fé e Alegria Brasil, padre Carlos James concedeu entrevista especial ao portal Jesuítas Brasil, para falar sobre a importância da Educação Popular, uma metodologia educacional presente em vários projetos da Companhia de Jesus, que têm auxiliado na transformação da vida de milhares de pessoas.
Qual o conceito da Educação Popular e seus principais objetivos?
Sabemos que são múltiplos os conceitos e as práticas em torno da Educação Popular, mesmo entre nós, jesuítas e colaboradores da Província do Brasil. Porém, a Educação Popular que merece crédito é a que se mantém fiel ao método dialógico e participativo, que capacita educadores e educandos a ler criticamente a realidade e a empenhar-se por transformá-la, tal como o educador Paulo Freire sistematizou em sua obra célebre, a Pedagogia do Oprimido.
Para ser libertadora, a Educação Popular precisa operar segundo a lógica dialogal, criativa e lúdica da roda de ciranda, em que todos se veem na roda, sem arrogância, sem distinções e em condições de igualdade. A igualdade é a condição fundamental do diálogo e está pautada e afirmada no valor de cada pessoa e dos saberes que traz em seu corpo, em sua vida. Como metáfora pedagógica e política, a roda da ciranda da Educação Popular contrapõe-se à verticalização das relações autoritárias do modelo tradicional de ensinar e aprender, a que Paulo Freire chamava de educação bancária, com seus conteúdos prontos e acabados, que são vertidos sobre os alunos e alunas obrigados a aprender e reproduzir de forma irrefletida, acrítica.
“[…] a Educação Popular é um método de educação em que todos aprendem e todos ensinam, respeitando-se, evidentemente, as diferenças de experiências e saberes”
De modo muito distinto, a Educação Popular é um método de educação em que todos aprendem e todos ensinam, respeitando-se, evidentemente, as diferenças de experiências e saberes. As diferenças não são hierarquizadas (saberes superiores, saberes inferiores), mas discutidas, refletidas, tematizadas, para que o conhecimento coletivo decorrente desse processo resulte em uma práxis criativa e transformadora da realidade.
A percepção da realidade que as classes populares têm de sua própria vida é o ponto de partida para a Educação Popular. Isso exige escuta atenta dos educadores e é o que possibilita a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica, sempre por meio do diálogo.
Esse método possibilita a homens e mulheres, crianças e adultos, apoderarem-se de suas vidas e de suas potencialidades, e tornarem-se capazes de incidir na realidade, para transformar e recriar o mundo em que vivem. Por isso, a Educação Popular tem, também, pretensão de realizar incidência na área política.
Como o método funciona na prática?
Ao visitar Fé e Alegria, no bairro de Taipas, em São Paulo (SP), a diretora do centro me contou como se aplica a Educação Popular no trabalho com crianças pequenas, de até cinco anos de idade. Segundo ela, a Prefeitura encaminha as crianças distribuídas por faixa etária. Porém, no Fé e Alegria, elas são recolocadas de acordo com o amadurecimento de cada uma delas. Desse modo, apontou-me uma criança de dois anos interagindo com outras, mas num grupo de crianças de quatro anos, porque era desenvolta, sabia falar e comunicar-se muito bem com as demais. Ao passo que um menino de quatro anos estava num grupo de crianças de dois anos. Ela comentou comigo que isso era sintomático, indicando que os pais daquela criança não investiram suficientemente tempo e afeto nela, o que impediu que se desenvolvesse de acordo com a sua idade. Quanto à estrutura arquitetônica, o prédio está adaptado à proposta pedagógica da Educação Popular: não há “salas de aula”, no sentido tradicional. Todo o espaço pode servir para atividades educativas, principalmente lúdicas. O dentro se integra ao fora, por meio de grandes janelas de vidro transparente. O centro de Fé e Alegria integra-se à comunidade local e a seu entorno. Num ambiente preparado para isso, crianças de três a cinco anos brincam com fantasias que escolhem espontaneamente em ambiente em que ocupam mesa de escritório, cozinha, sala de estar, representam papéis e, principalmente, conflitos familiares.
A pedagoga responsável pela atividade observa atentamente o que as crianças estão expressando, para programar atividades seguintes que vão dar conta dos dramas ali percebidos. No refeitório, mesas, cadeiras e o carrinho de comidas estão adaptados às crianças: elas mesmas se servem do que querem, na quantidade que desejam, utilizando talheres de metais. Tudo é supervisionado pelas educadoras, mas sem interferir na espontaneidade das crianças.
Adolescentes que estudam em escola pública são também atendidos, no período do contraturno, pelo centro de Fé e Alegria. Ali eles têm atividades de teatro, música, informática e capoeira, sempre na mesma postura dialogal com os educadores. Essas atividades são, ao mesmo tempo, lúdicas, formadoras de consciência cidadã e abertas às escolhas dos jovens, quanto ao que querem aprender e fazer.
Como proposta pedagógica libertadora, a Educação Popular pretende formar pessoas cada vez mais livres, espontâneas, criativas, solidárias com os demais e responsáveis pelo bem comum.
A Educação Popular é um dos caminhos para a Promoção da Justiça?
A Educação Popular, como prática pedagógica fundamentada na dimensão dialógica, explicita um conteúdo político democrático e participativo, de ver, julgar e agir a favor das classes populares, no sentido de defender e garantir seus direitos, além do empoderamento da pessoa como sujeito de sua própria história.
A perspectiva política da Educação Popular é a que busca promover a inserção do ser humano no mundo, por meio da interação solidária, cuidadora, transformadora das realidades desiguais e injustas. Passa, necessariamente, pelo conflito de interesses e pelas relações desiguais de poder, dominantes na sociedade capitalista neoliberal, para buscar um outro mundo possível, de convivência pacífica entre as pessoas e entre os povos, mediada pela justiça social e ambiental. Não se trata, de modo algum, de uma proposta pedagógica neutra. A neutralidade aqui serviria apenas para reproduzir as desigualdades dominantes, sejam elas econômicas, sociais, ambientais, étnico-raciais ou de relações de sexo e gênero. Ao contrário, a Educação Popular explicita a necessidade de exercer pressão sobre os poderes públicos, de modo articulado e participativo, para transformar as estruturas sociais e educativas que geram e perpetuam a exclusão, mas feito de modo a respeitar o processo de caminhada de cada comunidade local.
Quais as características e os diferenciais da Educação Popular dentro da Companhia de Jesus?
A Educação Popular ganha contornos próprios da Companhia de Jesus graças, principalmente ─ não exclusivamente─ ao movimento Fé e Alegria de Educação Popular Integral e Promoção Social, criado na Venezuela em 1955. Fé e Alegria surgiu do encontro do jesuíta Pe. José Maria Vélaz, acompanhado de estudantes da Universidade Católica Andrés Bello, com moradores de um bairro sem escolas, em Caracas. O pedreiro Abraham Reyes foi emblemático do espírito criativo e libertador da proposta pedagógica da Educação Popular, ao oferecer sua própria casa para ser a escola que acolheria “100 crianças sentadas no chão e 70 meninas no andar superior, sem carteiras nem quadro-negro, tendo como professoras duas moças do bairro, de 16 anos de idade”.
Esse evento-origem tornou-se um marco da identidade de Fé e Alegria. Desde então, a integração da educação não formal com a educação formal passou a ter importância fundamental no movimento, como caminho de dar oportunidades aos pobres e garantir seus direitos. Seja qual for a instância da prática educativa, para Fé e Alegria trata-se de explicitar e alimentar a educação como ferramenta de transformação social na perspectiva da defesa dos direitos conquistados e da criação de novos direitos.
Pela mesma razão, uma característica da educação não formal que passou a ser assumida em Fé e Alegria, desde sua expansão e fortalecimento nos países da América Latina , tem sido a da promoção social, entendida como “ação coletiva que busca desenvolver as potencialidades das pessoas e comunidades para colaborar na transformação da sociedade, na construção de um mundo mais justo, participativo, sustentável e solidário… e, portanto, busca incidir na melhoria da qualidade das condições econômicas, sociais, culturais e políticas da vida das pessoas e das comunidades” (Federação Internacional Fé e Alegria, 2009).
A Educação Popular na Companhia de Jesus tem como base duas vertentes, a inaciana e do educador Paulo Freire. Como se dá a convergência dessas duas vertentes na prática?
A Educação Popular e a Pedagogia Inaciana têm muitos elementos em comum, na sua concepção de meta e de processo educativos. Ambas partem da experiência da realidade de seus educandos, para daí realizar a análise do contexto pessoal e social. É comum, por exemplo, as atividades de Educação Popular incluírem a elaboração da história de vida e história do lugar; da reflexão sobre o sentido da experiência pessoal e do lugar, para se tirar daí a ação transformadora e libertadora. O conhecimento produzido é sempre coletivo, compartilhado, a exigir sistematização contínua, para que se obtenham aprendizagens críticas a partir dessas experiências. Na Pedagogia Inaciana, busca-se, para isso, a avaliação do processo e do resultado da ação, como verdadeira práxis de âmbito pessoal e coletivo.
“Educação Popular e a Pedagogia Inaciana coincidem em sua aplicação a qualquer processo educativo, de qualquer gênero e nível, escolarizado ou não, que tenha em vista formar sujeitos conscientes, competentes, compassivos e comprometidos”
A Educação Popular e a Pedagogia Inaciana coincidem em sua aplicação a qualquer processo educativo, de qualquer gênero e nível, escolarizado ou não, que tenha em vista formar sujeitos conscientes, competentes, compassivos e comprometidos. Contudo, há de se reconhecer que são mais notórios os sinais da aplicação da Pedagogia Inaciana na educação escolarizada. Há, ainda, um aspecto importante a ser considerado, quando se relaciona a proposta da Educação Popular com a Pedagogia Inaciana. Ambas têm em comum o valor singular de cada pessoa humana, com sua vocação comunitária e pública para interagir no âmbito societário, a serviço do bem comum e da redução das desigualdades sociais. Todavia, a Educação Popular distingue-se pela sua visão social crítica. Ela propõe e opera um corte cultural de classe na compreensão da realidade contraditória e na explicação das causas históricas, econômicas e sociais dessas contradições. Por isso, o educador popular e intelectual Ranulfo Peloso (CEPIS- Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae) resume bem a prática pedagógica da Educação Popular: “toda pessoa é capaz; só a classe oprimida quer; só quem está na produção pode; só quem se dispõe, a realiza de fato”.
No entanto, a opção pelos pobres é uma dimensão comum tanto à Educação Popular quanto à pedagogia dos jesuítas. Nas Características da Educação da Companhia de Jesus, o n. 88 declara: Nesse sentido, os pobres formam o contexto da educação jesuíta: nosso planejamento educacional deve ser feito em função dos pobres, desde a perspectiva dos pobres. Padre Luiz F. Klein, em seu livro Atualidade da Pedagogia Jesuítica (p. 85), apresenta mais longamente o item A opção pelos pobres e pela justiça. Segundo ele, essa consciência e ruptura de classe torna-se um dos pontos mais fortes.
Qual a incidência que esse tipo de trabalho pode ter na realidade da sociedade brasileira?
A Educação Popular e a Pedagogia Inaciana são fundamentos para um processo de transformação social, uma vez que visam formar pessoas críticas. Entretanto, ser crítico não implica necessariamente fazer incidência. As pessoas podem ser críticas em relação à realidade brasileira, mas não se mobilizarem para transformá-la. A transformação exige participação política e isso pode se dar de diversas formas (que podem ou não ser complementares): uma das formas é ocupar os espaços de participação social, tais como os conselhos de direitos e as audiências públicas, que são espaços de interlocução da sociedade civil com o Estado. Também é importante ir às ruas para visibilizar reivindicações e gerar pressão popular sobre questões que, caso fossem aprovadas, representariam enormes retrocessos na garantia de Direitos Humanos.
Mudanças significativas na realidade social devem passar pela conjugação da criticidade e incidência em políticas públicas, o que, em Fé e Alegria Brasil, é estimulado através da área de Ação Pública.
Desde quando a Companhia de Jesus desenvolve ações de Educação Popular no Brasil?
Nos anos de 1970, a Companhia de Jesus no Brasil comprometeu-se com a Pastoral Popular, praticada pelos jesuítas e colaboradores inspirados, por sua vez, no Apostolado Social dos jesuítas e nos decretos da 32ª Congregação Geral (1975), sobretudo o Decreto 4, que fortaleceu a relação fé e justiça, ao proclamar que “a Missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta”. Essa perspectiva alimentava o envolvimento dos jesuítas e seus colaboradores com os movimentos sociais e as práticas sociais libertadoras nos meios populares, da qual a Educação Popular era uma das dimensões. Nesse aspecto, a Educação Popular não tinha característica própria da Companhia de Jesus, mas era alimentada por ela, via Pastoral Popular e Apostolado Social.
Os Centros Sociais de Pesquisa e Ação Social (CIAS) exerceram papel importante na reflexão sobre a realidade social, a justiça e a democracia na América Latina, além de inspirar o engajamento de muitos jesuítas no compromisso com a justiça social, ao longo dos anos de 1970 e 1980. Contribuíram também as pastorais sociais da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), segundo o método crítico do ver, julgar e agir, tão presente nas Comunidades Eclesiais de Base e nas Campanhas da Fraternidade. Porém, na medida em que o engajamento social movido pela fé entrou em certa crise, nos anos de 1990, com o fim do socialismo real e o fortalecimento da democracia no Brasil, a Educação Popular hibernou como dimensão assumida pela Pastoral Popular nos meios populares, sem que desaparecesse completamente. Talvez, também, pelo fato de a educação promovida pela Companhia de Jesus no Brasil ter estado predominantemente mais restrita aos âmbitos dos colégios e universidades, e socialmente envolvida com as classes médias.
*A entrevista com o Pe. Carlos James contou com a colaboração de Carol Uehara, Cleide Lugarini de Andrade e Pe. Luiz F. Klein.