“A formação na Companhia sempre ampliou meus horizontes de fé e de vida e lançou-me, apesar das minhas resistências, a encontrar-me com o mundo“, revelou Pe. Bruno Franguelli. O jesuíta, de apenas 32 anos, é também poeta, escritor e comunicador. Já esteve em missão na Amazônia Peruana e foi vice-reitor do Santuário Nacional de São José de Anchieta, no Espírito Santo. Atualmente, vive em Roma (Itália), onde faz o curso de Especialização em Meios de Comunicação Social e colabora na Rádio Vaticano. Conheça um pouco mais da história do Pe. Bruno em entrevista concedida ao Em Companhia.
1 – Conte-nos um pouco sobre a sua história, família, onde nasceu…
Nasci em Sorocaba (SP), sou menino do interior, mas já digo de passagem que as músicas de estilo sertanejo universitário nunca me agradaram. Precisei deixar a cidade interiorana para descobrir que existiam outros estilos musicais (risos). Sou o primeiro de quatro irmãos. Ainda criança, comecei a descobrir que a Igreja tinha um gosto diferente para mim. Menino, ainda sem entender das coisas sagradas, já me sentia absorto pela beleza do mistério de crer. Admirava a roupa bonita do padre, gostava de brincar de Missa vestido com a camisa grande dos adultos e, ainda sem saber ler, fazia “pregações” interpretando as figuras de uma velha Bíblia ilustrada que minha mãe conservava desde sua infância. Parece engraçado, quando penso num primeiro momento de fé vocacional, lembro vagamente, como memória que o coração não quis esquecer: antes dos cinco anos, como pajem de honra de um matrimônio de parentes, cheguei próximo ao altar para entregar as alianças aos noivos e vi um padre pela primeira vez. Eu era criança demais para entender o que estava acontecendo, mas posso afirmar: naquele momento, teve início em mim o que mais tarde eu reconheceria como chamado. Meus familiares, que dificilmente frequentavam a Igreja, nunca compreenderam como isso começou. Eu também não consigo explicar. Parece que foi Clarice Lispector quem disse: “Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim.”
2 – Como conheceu a Companhia de Jesus? Por que decidiu ser jesuíta?
Essa pergunta me persegue com muita frequência e penso que jamais estarei livre dela. Surge dos outros, nasce de mim. Inspiração é algo sagrado. Sacramento celebrado nas liturgias da existência. Olho para a minha história e busco mil maneiras de responder à questão. A recordação me socorre e me devolve o menino que deixei escapar há alguns anos. A memória tecida de descobertas infantis responde: minha inspiração para ser jesuíta se chama José de Anchieta. Posso dizer que foi ele quem me apresentou seu primo, Inácio de Loyola.
Ouvi falar de Anchieta e dos jesuítas pela primeira vez nas aulas de História do Brasil. Lembro-me de que, embora meus professores soubessem muito pouco da vida desses homens, ensaiavam seus conhecimentos contando sobre a fundação da cidade de São Paulo e a ousada Ordem religiosa à qual Anchieta pertencia. Os minutos finais da aula eram dedicados à pintura de um desenho do apóstolo. Eu, sem muito entender a profundidade daqueles ensejos, ficava imaginando-me parte daquelas incríveis missões. No álbum de fotografia da família, uma das primeiras fotos registra um fato curioso, talvez profético: minha mãe, abrigando alguém no ventre, apoiada sobre uma pedra conhecida como cama de Anchieta, local em que, segundo críveis relatos, o santo permanecia longas horas para orar e descansar de suas longas viagens.
Acho que Deus se sente mais à vontade para passear em nossas vidas quando nos permitimos saborear o dom da simplicidade. Ele mora nas minhas recordações. Acho que é por isso que sou encantado por Anchieta. Ele encontrou a Deus nas veredas da simplicidade. Já aos 16 anos, comecei o discernimento na Companhia, aos 17, vivi uma experiência maravilhosa na Comunidade Vocacional e, aos 18, entrei no Noviciado da Companhia.
3 – Quais as experiências mais marcantes que o senhor vivenciou durante sua formação como jesuíta?
Minha formação na Companhia é tecida de experiências marcantes, algumas bem exigentes e difíceis. Recordo-me de dois momentos em particular. O primeiro foi durante o tempo do magistério em que vivi em uma ilha na Amazônia peruana. Distante dos rumores e também das atrações urbanas, foi incrível conhecer de perto uma cultura indígena, aprender com seus costumes, mas, ao mesmo tempo, foi desafiante e bem doloroso. A vida na selva não é para qualquer um. Há pouco tempo, recebi a triste notícia de que o padre Carlos Riudavets, com quem dividi aqueles difíceis dias de missão, foi terrivelmente assassinado ao lado do quarto onde morei. De fato, viver na selva é um martírio.
O outro momento que me recordo é de uma pequena missão humanitária que realizei por meio do JRS (Jesuit Refugee Service), no Quênia. Outra vez me encontrava em um local isolado e difícil, porém muito mais desafiante. Tratava-se de um campo de refugiados. Local onde faltava tudo, mas encontrava as pessoas sorrindo. Lá, as celebrações eucarísticas duravam mais de três horas e as pessoas se despediam tristes porque a Missa tinha terminado. No momento da procissão das oferendas, todo mundo se levantava para oferecer algo. Ninguém ali era pobre. Foi lá também que tive mais contato com pessoas de religião muçulmana. Emociono-me ao lembrar a dedicação deles no cuidado dos outros. Na despedida, não resisti e lhes confessei: “não sei se compreendem o que quero lhes dizer, mas vocês me evangelizaram!”
A verdade é que a formação na Companhia sempre ampliou meus horizontes de fé e de vida e lançou-me, apesar das minhas resistências, a encontrar-me com o mundo. Se hoje compreendo um pouco mais sobre humanidade, foi mais graças às experiências que fiz do que aos estudos que conclui.
4 – O senhor já publicou alguns livros. No nosso mundo hiperconectado, a arte da escrita ainda pode ser lugar de reflexão e aproximação com a alteridade?
Ouvi dizer que Dom Luciano Mendes de Almeida sempre aconselhava os jovens jesuítas a escrever. Eu me arrisquei nessa aventura. Parece que, aos poucos, escrever tornou-se uma necessidade para mim. É sábio da parte de Santo Inácio orientar os jesuítas a anotar suas moções e consolações não somente para que delas se recordassem, mas também para que revisitassem suas próprias palavras. No caso de uma publicação, quando se escreve pensando que alguém vai ler, a palavra se faz partilha. É delicioso ouvir um feedback de alguém dizendo que nossas palavras lhe fizeram bem. Rubem Alves dizia que escrever é uma ação antropofágica. Acredito muito nisso.
5 – Atualmente, o senhor está cursando uma especialização em Meios de Comunicação Social, em Roma (Itália). Qual a razão de estudar comunicação, como essa formação vai ajudá-lo na realização da missão?
Partindo do pressuposto de que é impossível não comunicar, posso dizer que todos, de algum modo, estamos inseridos nesse complexo mundo comunicativo. Meu objetivo é estudar para comunicar melhor e adquirir algum conteúdo que sirva como meio para comunicar eficazmente a Boa Notícia da nossa salvação: Jesus e seu projeto de Vida em abundância para todos. Com base no que sinto e vejo, percebo que, na vida acadêmica, é muito fácil esquecer-me da razão fundamental pela qual estou inserido ali e encantar-me por outras perspectivas. Mas, sem fechar-me a elas, peço sempre a graça de não perder de vista o real motivo dos meus estudos como jesuíta.
6 – Neste momento, existem muitos prognósticos que afirmam que o distanciamento social, por causa da covid-19, vai levar as sociedades a reverem valores e mudarem hábitos. O senhor concorda? A fé, na sua expressão profunda da espiritualidade, também passará por mudanças?
Penso que os momentos de dificuldades podem servir como oportunidades de rever os próprios passos e dar um salto de qualidade na vida, ou não. Nos últimos tempos, tenho ouvido tanto falar de fé, de oração, de Missa, espiritualidade… Nas redes sociais, abundam missas on-line e celebrações das mais criativas. Temo que percamos a oportunidade de encontrar o silêncio que somente este momento pode nos oferecer. Inspiradoras são as palavras do Papa Francisco diante da praça de São Pedro vazia: “Pensávamos que continuaríamos saudáveis num mundo doente”. A realidade da Kenosis ainda nos assusta e parece-nos incompreensível. Só peço a Deus que, diante de tantas insanidades e ações desumanas, não percamos a fé na humanidade.