O Brasil completou 35 anos de democracia este ano. Os avanços conquistados nesse período são notórios: o processo eleitoral é confiável, as liberdades de expressão e de manifestação aumentaram, a economia hoje é mais estável do que no passado e o índice que mede a extrema pobreza, mesmo que não satisfatório, recuou para 3,3% da população. Apesar disso, ainda existem lacunas, sobretudo, no que diz respeito ao Estado democrático de direito, muitas vezes, acometido por escândalos de corrupção, pela ausência de direitos humanos essenciais, pela violência, pela desigualdade social e pelo descaso das elites políticas e econômicas.
Em nosso país, a luta pela verdadeira democracia vem ocorrendo de forma lenta e gradual e alguns passos dessa caminhada são muito recentes e incompletos, visto que ainda estamos longe da igualdade de direitos e, principalmente, distantes da igualdade racial, de gênero e de oportunidades para todas as pessoas.
Seguramente, a superação desses problemas e a construção de uma cidade, de um país melhor, com políticas públicas de qualidade, estão relacionadas à capacidade da sociedade de exigir melhorias. Há muito tempo, a participação política não se resume simplesmente ao direito de votar e de ser votado, ela pode, e deve, ir além, com uma série de iniciativas que influenciam as decisões públicas federais, estaduais e municipais.
Não há como compreendermos o conceito de cidadania sem considerarmos seus vários aspectos e a relacionarmos com os direitos humanos essenciais, com a democracia e com a ética. Ser cidadão é ter consciência de que somos sujeitos de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à moradia, à igualdade, enfim, direitos civis, políticos, humanos e sociais. Contudo, a cidadania também pressupõe deveres. Em outras palavras, os indivíduos têm de ser conscientes de suas responsabilidades como parte integrante da sociedade e, para que alcancemos o bem comum, todos precisam dar sua contribuição.
Frente a esse cenário, a 71ª edição do Em Companhia propõe uma reflexão sobre democracia, representatividade, participação popular, luta contra o racismo, relações entre religião e política e religião e cidadania, para que, juntos, possamos, de fato, fazer a diferença na construção de uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária.
Saneamento básico: uma questão de democracia
A falta de acesso ao saneamento básico ainda é muito preocupante no Brasil e não condiz com sua importância no cenário mundial. O país é o quinto maior em extensão territorial, com uma população de cerca de 209 milhões de habitantes. Apesar disso, em pleno século XXI, algumas mazelas sociais e ambientais têm feito com que parte de seus cidadãos ainda viva em condições precárias, sem acesso a direitos humanos essenciais e universais, indispensáveis à vida com dignidade. Situação que, como veremos a seguir, expõe, a cada dia, a fragilidade da jovem democracia brasileira.
O ano de 2007 foi um marco importante na política de saneamento básico, visto que foi foi sancionada a Lei nº 11.445, resultado de um esforço histórico da sociedade civil, que buscava inovar o setor desde o período da redemocratização brasileira. Regulamentada em 2010, a lei subscreveu o saneamento básico como direito social e estabeleceu uma legislação moderna. Entre outros pontos, além de abrir portas para a atuação da iniciativa privada, a legislação definiu que cada município brasileiro deveria criar um planejamento básico, prevendo investimentos e financiamento de projetos, principalmente, em áreas ocupadas por populações de baixa renda, e instituiu o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). O plano estabeleceu metas e diretrizes para universalizar os serviços de distribuição de água tratada e de coleta e tratamento de esgoto no país.
A nova lei também elevou os investimentos para um patamar superior, consubstanciado no PAC 1 (40 bilhões + 10,4 bilhões de reais) e PAC 2 (45,8 bilhões + 4 bilhões de reais), nos governos Lula e Dilma Rousseff. No entanto, em virtude do grande déficit do setor e de decisões políticas e econômicas desfavoráveis, esses investimentos têm se mostrado insuficientes para alcançar a almejada universalização.
Traduzindo em números, no Brasil, são mais de 36 milhões de pessoas sem acesso à água tratada (17% da população), 101 milhões (48% ) não contam com serviço de coleta de esgoto e apenas 41% dos esgotos são tratados. Grande parte do esgoto vai, diretamente, para os rios e para o mar. Esse cenário reflete a realidade de um país sem estrutura para saneamento básico, fadado a continuar, pelos próximos anos, com problemas de saúde pública com alta incidência de doenças como hepatite A, febre amarela, verminoses , entre outras, decorrente desse cenário.
Quando consideramos o nível de perda na distribuição de água, o percentual, registrado em 2018, foi ainda mais alarmante, visto que mais de 38% da água tratada não chegou ao consumidor final porque foi perdida ao longo do sistema de distribuição, depreciado e sem manutenção adequada. Os dados são do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
É importante ressaltar que, no Brasil, o saneamento básico é um direito de todos, assegurado, direta ou indiretamente, pela Constituição Federal, pelos tratados internacionais e definido pela legislação nacional como o conjunto dos serviços de distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana e coleta de resíduos sólidos.
Sem direito à água e ao saneamento básico, muitos outros direitos humanos, inclusive o direito à vida, não podem ser garantidos. Água e saneamento precisam ser abundantes, acessíveis e disponíveis de modo contínuo e com qualidade. Quando essas condições sociais existem, toda a sociedade se beneficia. Os serviços de água tratada, a coleta e o tratamento dos esgotos levam à melhoria da qualidade de vida das pessoas, sobretudo, na saúde infantil, na redução da mortalidade, na educação, na renda do trabalhador, na valorização dos imóveis, na despoluição dos rios e na preservação dos recursos hídricos e da Casa Comum etc.
Os professores José Irivaldo Alves e Belinda Cunha, autores do ensaio Água, democracia e a construção da cidadania, conhecem bem o cenário brasileiro e são críticos sobre os impactos que a falta de saneamento pode provocar na saúde, na economia e na educação de um país: “Um saneamento ineficaz deixa as pessoas mais suscetíveis, atinge sua capacidade de trabalho e de certa forma interfere no processo de ensino aprendizagem, ou seja, na educação. É um ‘efeito dominó’ na sociedade”.
Para o cientista social e ativista pela defesa dos direitos humanos, com foco na luta pelo direito humano à água e ao saneamento básico, padre Sandoval Rocha, SJ, “todo esse cenário indica que não basta inscrever a cidadania nas leis, garantindo formalmente as condições necessárias para o desenvolvimento humano. É necessário que os direitos de cidadania sejam cada vez mais ampliados e efetivados, exigindo uma forte mobilização da sociedade para que o Estado cumpra com a sua obrigação. Embora as políticas neoliberais do atual governo não favoreçam a cidadania, priorizando os lucros das grandes empresas e dos bancos, é necessário um envolvimento político mais intenso da parte da sociedade, se quisermos evoluir para um estágio mais democrático e civilizatório”, avalia.
A falta de acesso à água e ao saneamento básico é resultado de injustiças sociais e desigualdades estruturais que evidenciam a fragilidade da democracia brasileira, é o que explicam José Irivaldo e Belinda Cunha. “Não podemos falar em democracia sem acesso universal ao bem mais básico que o ser humano e toda forma de vida pode ter, a água. Sem acesso à água e à saúde, a vida do ser humano está em risco. Por conseguinte, a dignidade humana não é concretizada. Uma nação verdadeiramente democrática deve ser fundamentada no estabelecimento da premissa de que o desenvolvimento só ocorrerá quando o acesso aos serviços e bens mais básicos estiver verdadeiramente concretizado. Há liberdade para aquele(a) que está oprimido sem água de qualidade? Posso falar em cidadania em um contexto de restrição ao acesso à água? Pensamos que aperfeiçoar a democracia e a cidadania passa, inevitavelmente, pelo acesso à água de qualidade”, defendem.
VIDAS NEGRAS IMPORTAM, SIM!
A cena de um policial branco ajoelhado no pescoço de um homem negro, que suplica, inúmeras vezes, que não consegue respirar, correu o mundo em 25 de maio de 2020. Resultando na morte de George Floyd, em Minnesota (Estados Unidos), o ato cruel reacendeu com força total o movimento # Black Lives Matter não só em terras norte-americanas, mas também no Brasil.
Vidas Negras Importam, nome do movimento em português, tem dado maior visibilidade à violência institucionalizada contra as populações negras, principalmente, nas periferias das cidades brasileiras, uma das faces da desigualdade racial no País. Porém, essa triste realidade não é recente e, se não nos engajarmos em combatê-la, provavelmente, estará longe de terminar!
Dados do Atlas da Violência 2020, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostram que, em 2018, do total de vítimas de homicídio, 75,7% eram negros (soma dos pretos e pardos, conforme classificação do IBGE), com uma taxa de 37,8 homicídios por 100 mil habitantes. Essa mesma taxa entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) cai para 13,9. Em outras palavras, 2,7 negros foram mortos, no Brasil, em 2018, para cada indivíduo não negro assassinado.
A reflexão sobre essa triste realidade é urgente, pois, somente assim, avançaremos na construção de uma sociedade realmente democrática. Para nos ajudar a refletir, a revista Em Companhia entrevistou duas mulheres que têm exercido importante papel no combate ao preconceito racial e na defesa dos direitos das minorias do nosso País, as professoras Valdenice José Raimundo e Vilma Reis!
Em 2018, 58 mil brasileiros foram assassinados, desse total, 75,7% eram negros [dados do Atlas da Violência 2020]. Cerca de 63,7% da população carcerária brasileira é formada por negros [dados de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional]. Qual é o caminho para reverter esse quadro?
Valdenice Raimundo: A sociedade precisa assumir o racismo e construir mecanismos eficazes para erradicá-lo. Enquanto a sociedade negar a existência do racismo, mesmo continuando a praticá-lo e a culpar os jovens negros e suas mães (sempre fazem referência às mulheres-mães), sua manutenção e as perversidades a ele inerente continuarão a assombrar 54% da população brasileira.
Vilma Reis: Eu escrevi meu trabalho de graduação e minha dissertação de mestrado sobre a matança da população negra no Brasil. Sou uma pesquisadora desse campo de conhecimento. Com o alto contingente de negros mortos e encarcerados, precisamos responder com medidas contundentes, com respostas muito fortes, posicionadas e absolutamente sem medo. Nós precisamos tratar o racismo institucional brasileiro como uma séria questão de Estado, ela não é uma agenda apenas da população negra. O Estado brasileiro e a sua democracia seguem ameaçados se não cuidarmos da questão do racismo institucional no Brasil, que ceifa a vida de milhares de pessoas.
Como chamar a atenção da sociedade para essa violência estrutural contra a população negra e para a necessidade de mudanças sociais urgentes?
Valdenice Raimundo: Entendo que a formação, por meio da implementação da Lei n. 10.639/03 [Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determina o ensino da história e das culturas africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares] é um caminho que, efetivamente, contribuiria para informar as pessoas brancas que o racismo é um desvalor e, desse modo, não deveria orientar o agir delas no mundo. Em outras palavras, a efetividade da lei formaria pessoas não racistas, capazes de respeitar a crença/religião, a cultura do/a outro/a. Fortaleceria também as pessoas negras, na medida em que passariam a ter acesso a história do seu povo sem distorções.
Vilma Reis: Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Esse é o lema da Coalizão Negra por Direito, da qual a Mahin-Organização de Mulheres Negras faz parte aqui em Salvador. Somos do corpo operativo da Coalizão. Esse é o manifesto que temos lançado no Brasil e tem de ser tratado no patamar que citamos na resposta da pergunta anterior, ou seja, como questão de Estado.
Muito se discute sobre o conceito de “lugar de fala” e a participação de pessoas brancas como aliados na luta antirracista. Por que lutar contra o preconceito racial não é uma luta de negro contra o branco, e sim uma luta por uma sociedade justa e igualitária?
Valdenice Raimundo: O racismo é uma criação humana (dos humanos brancos) como uma estratégia de dominação e, mesmo com os avanços da ciência, dos direitos humanos e das lutas libertárias, sua manutenção ainda é uma realidade. Os brancos aliados precisam reconhecer a história de privilégios que essa construção lhes favoreceu. Não tem como ser aliado/a sem esse reconhecimento. Como disse Angela Davis [filósofa e militante pelos direitos da população negra nos Estados Unidos e no mundo], “não basta dizer que é contrário ao racismo, é preciso assumir postura antirracista”. Em outras palavras, comprometer-se com estratégias de enfrentamento e combate para “superação” do racismo. Se almejamos uma sociedade justa e igualitária, temos de fazer esse enfrentamento que demanda reconhecimento e comprometimento. A luta é de todos/as que almejam um mundo no qual todas as pessoas acessem os direitos à educação, à saúde, à moradia, ao lazer, ao esporte, à cultura e, sobretudo, o direito de ser quem é.
Vilma Reis: Li um texto do companheiro David Choquehuanca, vice-presidente da Bolívia, que é de origem indígena [aimará] e que tem uma fala muito conectada com a Pachamama, com o respeito à natureza e à pluralidade dos sujeitos. Acho que o lugar de fala é essa participação de pessoas brancas na luta, como aliados antirracistas e também nesse esforço coletivo de termos uma sociedade em que nenhum grupo seja sufocado. Muitas pessoas brancas no Brasil têm se lançado na luta antirracista, mas nós ainda temos um grande trabalho a ser feito, um trabalho que não é fácil porque há um negacionismo da escravidão, há um silenciamento sobre a possibilidade de nós termos voz e polifonia no debate sobre a nação. Há dificuldade de compreender a necessidade de estarmos de pé para fazermos outro tipo de sociedade. Não é possível que as mulheres negras, o povo negro e os povos indígenas fiquem assistindo aos brancos de direita e aos brancos de esquerda dizerem qual será o projeto de nação. Isso nós não aceitamos. Então, isso é muito importante para buscarmos essa sociedade justa e igualitária.
Como cada cidadão, negro ou não, pode ser um agente transformador, um ativista contra o preconceito e o racismo encrustados em nossa sociedade?
Valdenice Raimundo: Assumindo, com clareza, que o racismo deve ser erradicado das relações entre as pessoas e comprometer-se em contribuir para que isso aconteça.
Vilma Reis: Toda luta que está em curso no Brasil é exatamente para viabilizarmos propostas emancipadoras, como têm feito os movimentos de mulheres negras na nossa pluralidade. Acho que é desse esforço político intenso que temos feito que surgirá a possibilidade de uma transformação política verdadeira.
Há sinais de esperança em meio ao vendaval da pandemia e das crises econômica, política e religiosa no Brasil?
Valdenice Raimundo: Como disse Dom Pedro Casaldágila, “quanto maiores forem as adversidades, maior precisa ser nossa esperança”. Há muitos sinais de esperança presentes na solidariedade de várias pessoas que se colocam em movimento para socorrer as que têm fome, dos médicos que arriscam suas vidas para cuidar dos enfermos… Há sinais!
Vilma Reis: Sim, o que nos mantêm, neste momento, é a esperança. É ficando ao lado dos explorados deste mundo, nos posicionando ao lado, no meio e por dentro da luta dos injustiçados. Nós aprendemos com Pedro Casaldágila que, se estivermos em dúvida, devemos ficar ao lado dos injustiçados, daqueles que nada têm, que são os empobrecidos. Esse é um debate político fundamental para todos e todas que acreditamos em um diálogo com a Igreja da saída, com a Igreja de Francisco, com a Igreja dessa liderança mundial, desse expoente de luta por liberdade, que é o Papa Francisco e de toda essa Igreja que se levantou a partir do Concílio Vaticano II, de 1960. Somos da parceria com as pastorais sociais, visto que boa parte da luta quilombola, da luta da pesca artesanal, das lutas urbanas, desde os cursinhos pré-vestibulares e os quilombos educacionais, temos feito junto com elas. Assim como todo o enfrentamento ao genocídio da juventude negra.
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