A Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) realizou no dia 27 de novembro, em seu Campus, em Belo Horizonte (MG), a missa e a solenidade de colação de grau dos formandos do curso de bacharelado em Teologia (turma 2020). A cerimônia foi marcada por muita emoção e por protocolos sanitários rigorosos para atender às recomendações de combate à pandemia da covid-19.
A mesa foi composta pelo reitor da FAJE, Pe. Geraldo Luiz De Mori, SJ, pelo diretor do Departamento de Teologia, Pe. Jaldemir Vitório, SJ, pelo diretor do Departamento de Filosofia, Pe. Elton Vitoriano Ribeiro, SJ, pelo coordenador do curso de Teologia, Pe. Francisco das Chagas de Albuquerque, SJ, pelo coordenador do curso de Filosofia, Prof. Bruno Pettersen, e pelo secretário geral da FAJE, Bertolino Alves de Rezende.
Em discurso, o Pe. Jaldemir Vitório fez uma reflexão oportuna e profunda sobre a pandemia como kairós, o papel da Igreja em tempos de incertezas e o fazer teologia em tempos de pós-pandemia. Confira a íntegra do discurso:
Prezados(as) bacharéis em Teologia da FAJE, da turma 2020.
De forma indesejada e inesperada, estamos fazendo esta colação de grau com os cuidados exigidos em tempos de pandemia, decretada em 11 de março. Pegou-nos todos de surpresa! Desde então, nossa vida acadêmica foi revirada de cabeça para baixo, exigindo de cada um(a) adaptar-se às novas circunstâncias com criatividade e resiliência, à espera da “nova normalidade”, que não sabemos como será.
No entanto, podemos entender a pandemia como kairós, um “sinal dos tempos”, a desafiar nossa condição de teólogos e de teólogas. Pensando no fazer-teologia na pós pandemia, sinto que somos interpelados a agir em cinco vertentes interconectadas:
1ª – Somos desafiados a construir uma teologia da esperança, na contramão dos anunciadores do fracasso e do fim. Que Palavra temos a oferecer quando um ser invisível – cognominado covid-19 – disseminou pânico pelo mundo a fora, abalou a economia global, criou um caos sanitário sem precedentes? Que Palavra temos a oferecer que seja capaz de manter elevados os ideais de quem perdeu tudo e se vê desafiado a começar da estaca zero? Qual o papel da fé e das nossas igrejas, em tempos de incerteza? “Esperar contra toda esperança” (Rm 4,18), síntese da fé abraâmica, torna-se uma consigna para os teólogos e as teólogas. Uma canção da MPB (Música Popular Brasileira), composta Ivan Lins e Vitor Martins em 1979 (em plena ditadura militar), retrata bem qual deve ser nosso ânimo teológico neste momento. Diz a letra:
Desesperar jamais / Aprendemos muito nesses anos / Afinal de contas não tem cabimento / Entregar o jogo no primeiro tempo / Nada de correr da raia / Nada de morrer na praia / Nada! Nada! Nada de esquecer / No balanço de perdas e danos / Já tivemos muitos desenganos / Já tivemos muito que chorar / Mas agora, acho que chegou a hora/ De fazer valer o dito popular / Desesperar jamais.
Que jamais nos desesperemos! Sejamos construtores da esperança.
2ª – Somos desafiados a fazer uma teologia do “novo céu e da nova terra”, sem saudosismos, com sua fixação num passado que não voltará jamais. Como ajudar as nossas igrejas e as pessoas de fé a compreenderem que “o rio da história não corre para trás”, donde a inutilidade de investir em pautas chamadas “conservadoras”, insistentes na recuperação de liturgias ultrapassadas, na obsessão por um moralismo sem consistência evangélica, na evocação de tradições teológicas inúteis em tempos de pós-verdade, pós-fé, pós-religião, pós-igreja, enfim, pós-tudo. A teologia do “novo céu e da nova terra”, firmada na milenar Tradição teológica judaico-cristã, será credível na medida de sua capacidade de descortinar para a humanidade uma nova maneira de ser, em que “a imagem e semelhança de Deus”, presente no mais íntimo de cada pessoa, resplandeça em consonância com o desejo do Criador.
3ª – Somos desafiados, também, a fazer uma teologia profética do cuidado com os mais fracos, empobrecidos e marginalizados do nosso mundo, na contramão de um sistema que privilegia as elites, de modo a gerar ricos, cada vez mais ricos, e pobres, cada vez mais pobres. Trata-se de fazer uma teologia militante, com os pés na realidade, que não se fecha nas academias, nas bibliotecas e nos gabinetes, uma teologia livresca. As questões teológicas serão aquelas que a humanidade sofredora levanta, em contexto de injustiça, de desigualdade e de exploração. Como pensar um compromisso honesto com Deus, para além dos dogmas e das doutrinas, num contexto de mundo em que não se vê a fé expressar-se como caridade? Como proclamar que “Deus é amor” (1Jo 4,16), quando se banaliza a vida humana, por um egoísmo cruel? Os teólogos e as teólogas não podem se fechar no mundinho de suas produções acadêmicas, mas também em seus mundinhos estreitos de atuação pastoral, como o sacerdote e o levita da parábola evangélica, que passam para o outro lado ao se defrontarem com o irmão semimorto (Lc 10,25-37).
4ª – Somos desafiados, igualmente, a fazer uma teologia profética do cuidado com a sustentabilidade da Casa Comum – ecoteologia –, alargando nossos horizontes para abarcar a Criação inteira ameaçada pela ganância do capital e sua sede insaciável de lucro obtido pelo consumismo desenfreado. O cuidado com a Casa Comum, no contexto de uma teologia honesta, se preocupará com os que são colocados à margem do banquete da vida, por não terem acesso aos bens da Criação, reservados aos privilegiados. Não se trata de fazer teologia, como se estivesse na moda falar em ecologia, meio ambiente, sustentabilidade do planeta. Deixando de lado os modismos, nós, teólogos e teólogas, devemos nos convencer de que marchamos para um ponto sem retorno de esgotamento dos recursos que a humanidade tem para sobreviver, e que, sem partilha e solidariedade, num esforço comum para criarmos um mundo mais igualitário, estamos todos fadados ao extermínio. A Teologia tem uma palavra a dizer na linha de uma ética carregada de humanismo, com responsabilidade pela obra de Deus na Criação, com os olhos voltados para as vítimas de um sistema iníquo sem entranhas de misericórdia.
5ª– Por fim, no meu entender, somos desafiados a fazer uma teologia dos Fratelli Tutti, em vista de criar a humanidade querida por Deus, sem sectarismos, fundamentalismos, racismo, xenofobia, misoginia, machismo, preconceitos e tantas outras formas de atropelos da dignidade humana. Somos desafiados a repensar a antropologia fazendo-a coincidir com a teologia bíblica que pensa a humanidade inteira formada por filhos e filhas de Deus, uma grande família, onde todos são irmãos e irmãs, em que raça, cor da pele, gênero, língua, ideologia, religião, cultura, nacionalidade etc., longe de desunirem e criarem muros, sejam um apelo para a busca da unidade na diversidade, da convergência sem a tentação da uniformidade, da construção do “nós” na valorização de cada “eu”.
Temos no Papa Francisco um excelente incentivo para fazer teologia em tempos de pós-pandemia. O testemunho de fidelidade ao evangelho e aos pobres faz dele uma voz profética a nos tirar de nossas comodidades. Em face das acusações malévolas que lhe são feitas por não poucos católicos, ressoam em meus ouvidos as palavras do Profeta Jesus de Nazaré, no evangelho de Mateus:
“Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados, quantas vezes eu quis ajuntar seus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo das asas, mas você não quis! Eis que sua casa ficará abandonada. Eu lhes digo: vocês não me verão mais, até que digam: ‘Bendito aquele que vem em nome do Senhor’” (Mt 23,37-38).
Os tempos de pós-pandemia confrontam vocês, neo-bacharéis, com uma pergunta incontornável: que tipo de teólogo e de teóloga desejo ser? Faço votos de que a resposta de cada um(a) esteja, realmente, sintonizada com o Jesus dos Evangelhos e seu testemunho de serviço ao Reino de Deus, até o extremo da morte de cruz.
Parabéns!
Pe. Jaldemir Vitório, SJ
Diretor do Departamento de Teologia – FAJE