O Seminário Três anos do massacre do Rio Abacaxis: haverá justiça e reparação?, realizado entre os dias 02 e 04 de agosto, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), promoveu o debate sobre os fatos ocorridos durante e após a morte de quatro ribeirinhos e dois indígenas durante uma ação policial da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, em 2020. O objetivo do evento foi esclarecer as razões que impedem o governo brasileiro de identificar os envolvidos e aplicar as punições cabíveis.
O grupo de pesquisa Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia, o Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEOG), a Comissão Pastoral da Terra Regional Amazonas (CPT Regional Amazonas), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi Regional Norte I), a Casa da Cultura do Urubuí (Cacui), a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) foram os organizadores do encontro. Entre as instituições participantes do Seminário, estava o Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares).
No primeiro dia do Seminário, pessoas envolvidas na defesa da vida dos povos Maraguá, Munduruku e ribeirinhos deram testemunho. No segundo dia, a professora doutora da Ufam, Iraildes Caldas Torres, fez a acolhida e desejou forças para continuar a luta por justiça para as vítimas desse massacre. Em seguida, a mesa foi composta e algumas vítimas foram chamadas para dar testemunho. No entanto, por questões de segurança, não tiveram a identidade revelada.
Em seguida, o Seminário contou com a participação da Dra. Ana Valeska Duarte, do Movimento de Prevenção e Combate à Tortura (MOPCTR), que tem acompanhado o caso do Rio Abacaxis. Durante o Diálogos Amazônicos, que ocorrerá em Belém (PA), o movimento pedirá ao presidente do conselho um registro ou momento de silêncio em memória aos três anos do massacre.
Um dos momentos mais importantes do encontro foi o testemunho das famílias das vítimas. Um representante dos ribeirinhos relatou a tristeza de falar deste caso tão doloroso. “Faz pouco tempo do acontecido, então dói falar, mas estamos aqui não para pedir indenização, e sim pedir justiça para todos os que foram torturados e mortos. Quero mostrar nossa indignação e desconforto pelo descaso dos poderes constituídos do nosso país. Não matamos ninguém, estamos pagando pela incompetência e irresponsabilidade dos mandantes desse crime. Quantos delegados e juízes já passaram por esse caso? De forma maldosa, um dos juízes disse que o território do Rio Abacaxis estava liberado. Então, entraram madeireiros, caçadores, grileiros, traficantes e, desde então, nossa terra vem sendo saqueada. Ficamos presos em nossas casas e, quando saímos, não sabemos se vamos voltar”, contou.
Um dos representantes dos Mundurukus relatou também: “nossos parentes pagaram por algo que não tem nada a ver com isso. Dois deles foram assassinados brutalmente com seis disparos. Nossa terra está identificada, não tem como entrar e dizer que não sabem. Há GPS para todos os lugares. Não podemos permanecer calados diante dessa injustiça. A lei do nosso país é dividida, infelizmente. Para a classe alta, é uma, e para nós, indígenas, é outra. Pedimos socorro, e o governo querendo massacrar mais. Disseram que entraram no rio enganados. Quando os mataram disseram que acertaram o caminho. Na aldeia, éramos livres para nadar, pescar…agora não temos mais essa liberdade, vivemos com medo do que possa acontecer. Sinto que estamos esquecidos. Agradeço por estarem nos ajudando”.
Uma representante dos Mundurukus também expressou o apoio recebido. “Hoje, estamos aqui para que não fique impune. Essas pessoas tiraram vidas inocentes. Sempre preservamos a nossa terra. A nossa terra é demarcada. Nós pedimos aqui que o governo repare o que aconteceu. Quem mandou matar? Isso me deixa muito indignada. Dizem para eu não vir para esses eventos, mas não vou desistir. Não era para eu estar viva, mas Deus é bom. Por isso, estou aqui para lutar pelos que morreram. Quero estar viva para ver quem fez isso com nosso povo, que nunca viveu assim. Isso dói, me deixa revoltada pelo que o governo fez. Se a pessoa não tivesse ido lá sem autorização, nós não estaríamos sofrendo. O que foram fazer lá, na nossa área demarcada? Queremos uma resposta. O nosso parente que morreu era trabalhador, funcionário público, e na ocasião, transportava nossos documentos. A Força Nacional está em Nova Olinda do Norte (AM). No entanto, não me sinto segura, sinto que estou ameaçada. Eu vim para reivindicar nossos direitos como indígena. Não vim aqui para passear. Vim para cobrar”, finalizou.
“Aconteceram todos os tipos de violações de direitos nesse massacre, e até hoje não temos uma resposta”, cobrou outro representante dos ribeirinhos. E acrescentou: “Não há rondas dentro do Rio Abacaxis. Se passou para o âmbito Federal, até agora eu não vi. Corremos riscos o tempo todo. A parte psicológica do povo está traumatizada. Quem vive ali nunca viu um terror como este. Em nome de todos, peço que a justiça prevaleça”.
Outra representante relatou: “Meu irmão estava na embarcação voltando do trabalho para a casa e até hoje não apareceu. Peço justiça. Essa noite, pedi a Deus que me mostre onde ele está. Meu pai e minha mãe estão lá em casa, tristes, sem comer de tristeza. Quando soube do ocorrido, eu andava da sala para cozinha sem saber o que fazer. Sou mãe e não desejo isso para ninguém. Não podemos nos calar. Tem que haver justiça para todos. É muito triste e revoltante. Pedimos ajuda e justiça”.
“Estamos lá protegendo nosso rio, nossa natureza. Estamos sendo punidos por proteger nossa casa? Uma casa que é de todos. Quando protegemos, estamos defendendo nossa floresta por todos, por todo o Brasil. O Estado deveria proteger o rio, as caças e os peixes para todos. É difícil haver punição para os poderosos. Nossas aldeias foram incendiadas, o pouco que tínhamos foi destruído. Entraram proferindo palavras muito pesadas diante de famílias e crianças”, disse um Munduruku.
Em nome de todos os povos indígenas, um representante dos Maraguá também pediu justiça: “A luta de um povo é a luta de todos os povos. Nós, indígenas, não saímos de nossas aldeias para atacar ninguém em suas instituições. Então, por que entraram em nossa terra para nos matar? Peço justiça para os povos do Abacaxis”.
Um dos momentos mais emocionantes foi quando todos os participantes, de mãos dadas, cantaram Pai Nosso dos Revolucionários. Música de autoria de Cirineu Kuhn, e que diz: Pai nosso, dos pobres marginalizados. Pai nosso, dos mártires, dos torturados. Teu nome é santificado naqueles que morrem defendendo a vida. Teu nome é glorificado, quando a justiça é nossa medida. Teu reino é de liberdade, de fraternidade, paz e comunhão. Maldita toda a violência que devora a vida pela repressão. Queremos fazer tua vontade, és o verdadeiro Deus libertador. Não vamos seguir as doutrinas corrompidas pelo poder opressor. Pedimos-te o pão da vida, o pão da segurança, o pão das multidões. O pão que traz humanidade, que constrói o homem em vez de canhões. Perdoa-nos quando por medo ficamos calados diante da morte. Perdoa e destrói os reinos em que a corrupção é a lei mais forte. Protege-nos da crueldade, do esquadrão da morte, dos prevalecidos. Pai nosso revolucionário, parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos. Pai nosso, revolucionário, parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos. Pai nosso, dos pobres marginalizados. Pai nosso, dos mártires, dos torturados”.
Durante as falas da plenária, uma jornalista do jornal Amazônia Real questionou sobre o tipo de ameaças que indígenas e ribeirinhos receberam. As respostas revelaram a dimensão do terror vivido pela população local:
“Recebemos uma ameaça direta do líder da ação: ‘Tuxaua, não deixe ninguém sair da aldeia. Se virmos alguém no rio, nós vamos matar’. Ele também disse que queria a família (…). O casal teve que sair de lá. Hoje, vive em outro município. Não fazemos mais denúncias, porque quando denunciamos, o próprio denunciado apareceu um dia em nossa casa com o papel da denúncia. Como ele teve acesso à denúncia? Será que a própria polícia pode ter vazado? As ameaças são constantes. E não denunciamos mais”.
“Também ocorreu que uma das famílias foi fazer uma denúncia, e o agente policial afirmou que não havia papel para registrar o ocorrido. E ainda disse para a parente entrar no carro, que a levaria até onde ela queria chegar. Mas, ao ver agentes da Funai, disse que era melhor adiar o assunto”.
“A Força Nacional está em Nova Olinda do Norte. Por que não estão lá no Rio Abacaxis, que está sendo saqueado? O conflito ocorreu no Rio Abacaxis e não em Nova Olinda. É dentro do Rio Abacaxis que estão os saqueadores de pesca, caça, tráfico de madeira e animais silvestres. Peço que se faça uma ronda pelo menos duas vezes por semana.”
“O Rio Abacaxis está sendo muito saqueado e estamos aqui pedindo socorro. Nós indígenas estávamos protegendo o rio. Antes do que aconteceu, nós o protegíamos; agora passam na frente da aldeia embarcações com toneladas de carne de caça. E se falarmos algo, somos ameaçados de morte. Pedimos ajuda para proteger o Rio Abacaxis.”
“A Polícia Militar não está atuando lá, de fato. Após o que aconteceu, nem nossos BOs são atendidos. Tentam menosprezar os acontecimentos. Um motor de uma ambulância foi roubado, fomos registrar o BO e nos mandaram fazer isso em Borba, sem condições. Agora, por que é a mesma instituição em Nova Olinda?”
“A terra indígena foi massacrada durante o governo passado. Quando disseram que não haveria mais nenhum milímetro de terra, fortaleceram todos os inimigos dos povos indígenas. Hoje estamos aqui diante de todas essas violações de direitos nas terras indígenas.”
“A região Abacaxis não era muito visível para as pessoas que não vivem lá, mas hoje alguns falam mais sobre ela. E afirmo que há muitos jovens lá. Eu, como jovem Maraguá, sempre sinto essa força para lutar pelo meu povo. Agradeço ao Cimi por ter aberto essa porta para que eu pudesse aprender mais sobre os direitos”, ressaltou a indígena Maraguá.
O terceiro dia do seminário contou com a participação de representantes da Polícia Federal (PF), do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e do Ministério da Justiça (MJ).
Sobre o Massacre
Em agosto de 2020, os direitos humanos de indígenas e ribeirinhos residentes nas terras às margens dos rios Abacaxis e Mari-Mari, entre os municípios de Borba e Nova Olinda, no Amazonas, foram brutalmente desrespeitados por forças policiais do Estado. Em uma ação de vingança que, para obter legitimidade perante a sociedade, usou o pretexto de “combate ao tráfico de drogas”, pessoas inocentes foram torturadas e mortas.
O doloroso evento de assassinato e tortura, conhecido como “massacre do Abacaxis”, é um exemplo emblemático da violência das forças policiais do Estado e também da impunidade quando essa violação dos direitos humanos ocorre contra a população mais vulnerável socialmente.
Três anos após o massacre, as marcas das agressões ainda estão profundamente enraizadas na alma dos Povos Munduruku, Maraguá e das famílias ribeirinhas que foram direta e indiretamente vitimadas pela ação da Polícia Militar do Estado do Amazonas.
Esperança
Os povos indígenas têm o direito de manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas, econômicas e sociais. Dessa forma, deve-se assegurar que possam desfrutar de seus próprios meios de subsistência e desenvolvimento, para que possam se dedicar livremente a todas as suas atividades econômicas, tradicionais e de outro tipo. Da floresta, eles retiram o alimento, os materiais para construção das aldeias, água pura, especiarias, frutas e muito mais… É o exemplo perfeito de como é possível convivermos em paz e sem a necessidade de destruir matas, poluir rios, desmatar. Os povos indígenas protegem a natureza, e suas vidas devem ser defendidas e cuidadas.
A conservação ambiental das terras indígenas é uma estratégia de ocupação territorial estabelecida pelos povos indígenas, que contribui para ampliar a diversidade da fauna e da flora local, pois eles possuem formas únicas de viver e ocupar um lugar. A falta de cumprimento de direitos básicos de proteção à vida dos povos originários causou devastação nas comunidades indígenas e destacou a importância da atuação de instituições responsáveis pela defesa desses povos.
O bem-estar dos povos indígenas é a salvação do planeta, que está em colapso. Culturalmente, a natureza representa para os indígenas muito mais do que um meio de subsistência. Representa o suporte da vida social e está diretamente ligada aos sistemas de crenças e conhecimentos, além de ter uma relação histórica. Respeito e equilíbrio: a relação entre os indígenas e a natureza é pautada por dois elementos básicos para o dia a dia de qualquer ser humano. O relacionamento, que também envolve afeto, faz com que vivam uma relação mais próxima e sagrada, como se a terra fosse a grande mãe. Esse estilo de vida deve ser transmitido de geração em geração para o próprio bem da humanidade. Portanto, a luta deles é de todos!
Conheça as organizações que integram o Coletivo pelos povos do Abacaxis:
- Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro Residentes em Manaus (Amarn)
- Casa da Cultura do Urubuí (Cacuí)
- Comissão Pastoral da Terra Nacional (CPT)
- Comissão Pastoral da Terra Regional Amazonas (CPT-AM)
- Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
- Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
- CRB Regional Amazonas e Roraima
- Espaço Feminista URI HI
- Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia)
- Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM)
- Frente Amazônica de Mobilização e Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi)
- Grupo de Pesquisa Planejamento e Gestão do Território na Amazônia (Dabukuri)
- Movimento de Mulheres Negras da Floresta (Dandara)
- Organização das Lideranças Mura de Careiro da Várzea (OLMCV)
- Organização de Mulheres Indígenas Mura de Autazes (OMIM)
- Rede um Grito pela Vida
- Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares)
Saiba mais sobre o massacre do Rio Abacaxis: https://bit.ly/47qwo5J
Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares)
Conheça as organizações que integram o Coletivo pelos povos do Abacaxis:
- Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro Residentes em Manaus (Amarn)
- Casa da Cultura do Urubuí (Cacuí)
- Comissão Pastoral da Terra Nacional (CPT)
- Comissão Pastoral da Terra Regional Amazonas (CPT-AM)
- Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
- Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
- CRB Regional Amazonas e Roraima
- Espaço Feminista URI HI
- Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia)
- Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM)
- Frente Amazônica de Mobilização e Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi)
- Grupo de Pesquisa Planejamento e Gestão do Território na Amazônia (Dabukuri)
- Movimento de Mulheres Negras da Floresta (Dandara)
- Organização das Lideranças Mura de Careiro da Várzea (OLMCV)
- Organização de Mulheres Indígenas Mura de Autazes (OMIM)
- Rede um Grito pela Vida
- Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares)
Saiba mais sobre o massacre do Rio Abacaxis: https://bit.ly/47qwo5J
Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares)