“Diz uma história que numa cidade apareceu um circo, e que entre seus artistas havia um palhaço com o poder de divertir, sem medida, todas as pessoas da plateia e o riso era tão bom, tão profundo e natural, que se tornou terapêutico. Todos os que padeciam de tristezas agudas ou crônicas eram indicados pelo médico do lugar para que assistissem ao tal artista que possuía o dom de eliminar angústias.
Um dia porém um morador desconhecido, tomado de profunda depressão, procurou o doutor. O médico então, sem relutar, indicou o circo como o lugar de cura de todos os males daquela natureza, de abrandamento de todas as dores da alma, de iluminação de todos os cantos escuros do nosso jeito perdido de ser.
O homem nada disse, levantou-se, caminhou em direção à porta e quando já estava saindo, virou-se, olhou o médico nos olhos e sentenciou: “não posso procurar o circo… aí está o meu problema… eu sou o palhaço”.
Este conto do professor de literatura e escritor Nailor Marques Jr se presta a múltiplas interpretações. Uma vez narrada a história pode-se aplicá-la a diferentes situações e contextos existenciais. O autor aplicou a mensagem da sua história à situação do professor. O leitor poderá lê-la na íntegra nas redes sociais (https://abre.ai/ljF7). Poderíamos também fazer uma semelhante referência ao padre.
No livro “Padres Exaustos: A Síndrome de Burnout no Contexto Eclesial Brasileiro”, o autor Vagner Sanagiotto aborda principalmente os desafios enfrentados pelos padres em relação à saúde mental. O foco é a síndrome de burnout, que afeta aqueles no ministério religioso devido às exigências emocionais, espirituais e físicas de sua vocação. O autor explora como o trabalho pastoral, com suas características singulares, pode levar ao esgotamento, propondo uma análise das causas, manifestações e possíveis soluções para esse problema no contexto eclesial.
Ante tantos desarranjos sociais, conflitos relacionais, problemas conjugais e afetivos, crises de consciência, disputas entre denominações religiosas, sempre há quem recomende procurar um determinado padre, ir à sua missa, ouvir a sua pregação, participar de suas palestras, ler os seus escritos, segui-lo nas redes sociais, porque ele sempre tem uma palavra de sabedoria, de ânimo, de conforto, de orientação que faz bem às pessoas, e ele, o padre, sabe que as pessoas esperam justamente isso dele. Se tal padre, agora sem suas vestimentas ou símbolos religiosos identificadores fosse compartilhar com esse alguém seus conflitos emocionais ou afetivos e ouvisse deste alguém o conselho de procurar o padre, teríamos a versão conclusiva semelhante à da história do palhaço: “não posso procurar o padre… aí está o meu problema… eu sou o padre.”
Assim como quem vai ao circo ou a um show de humor já descarta a possibilidade de encontrar o palhaço ou o humorista triste, também quem vai ter com o padre já descarta a possibilidade de encontrá-lo desmotivado, abatido, triste. O que ocorre é que se cria uma imagem idealizada de uma pessoa imune à tristeza, aos momentos difíceis na vida, às possíveis crises existenciais, psíquico-emocionais, afetivo-sexuais. Ao evitar a todo custo causar algum tipo de decepção em quem o procura, o padre precisa representar aquele papel de invulnerável que se espera dele. Com o tempo, o enorme esforço que precisa dispender para manter as aparências mina-lhe o ânimo, e a consciência que acusa a artificialidade daquela representação torna-se um juiz implacável.
A propósito de “palhaço”, o filósofo Søren Kierkegaard, em seu livro Either/Or, nos legou uma estória até certo ponto semelhante. Contou ele que “numa aldeia na Dinamarca havia um circo ambulante e este ardia em chamas. O diretor mandou imediatamente o palhaço, que já se encontrava vestido e maquiado a caráter, para a vila mais próxima, para que buscasse ajuda, advertindo que existia o perigo de o fogo se espalhar pelos campos ceifados e ressequidos, com risco iminente para as casas do próprio povoado.
O palhaço correu até a vila e pediu aos moradores que viessem ajudar a apagar o incêndio que estava destruindo o circo. Mas os habitantes viram nos gritos do palhaço apenas um belo truque de publicidade que visava levá-los em grande número às apresentações no circo; aplaudiam e morriam de rir. Diante dessa reação, o palhaço sentiu mais vontade de chorar do que de rir.
Fez de tudo para convencer as pessoas de que não estava representado, de que não era um truque, mas sim um apelo da maior seriedade: tratava-se exatamente de um incêndio. Mas a sua insistência só fazia aumentar os risos, achavam excelente a sua performance até que o fogo alcançou de fato a vila. Aí já era tarde, e o fogo acabou destruindo não só o circo, como também o povoado”.
Muitas vezes, ao que parece, a forma mais eficiente de você dizer a verdade, ser ouvido e compreendido é apresentar-se sem aquelas vestimentas, acessórios e máscaras que acentuam tanto o superficial estereotipado da personagem que encobrem totalmente a verdade que habita a sua interioridade. Outras vezes, justamente por se apresentar sem tais dispositivos, as pessoas não te compreenderão e te sugerirão que volte a usá-los, porque elas não estão acostumadas a te ver e te ouvir como realmente você é.
O caso é que representamos muitos papéis na sociedade, nos moldando a contextos, costumes e expectativas. Representar papéis traz consigo o perigo de se confundir o que se é com a representação de ser. Jamais deveríamos esquecer que no grande teatro da vida não se admitem ensaios; ou ainda: que no grande circo da vida não se pode ser palhaço em tempo integral.
Luiz Sureki, SJ, é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da Faje
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