O superior geral da Companhia de Jesus, padre Adolfo Nicolàs, enviou uma mensagem para os jesuítas por ocasião da canonização de José de Anchieta.
Confira a carta na íntegra:
A TODA A COMPANHIA
Queridos irmãos e amigos no Senhor:
A canonização nesta data, 3 de abril, do Beato José de Anchieta é um acontecimento que a Igreja do Brasil desejou muito e há muito tempo. Anchieta foi proclamado Apóstolo do Brasil, título pelo qual é conhecido até hoje, pelo arcebispo do Rio de Janeiro, na cidade de Reritiba, na mesma Igreja do Colégio onde se celebraram seus funerais em 1597.
A Companhia não deve deixar de responder a este convite que lhe é feito de resgatar esta figura polivalente, motivadora e extremamente atual. O que nos quer dizer o Senhor ao nos presentear, em menos de um ano, com o reconhecimento eclesial do valor evangélico das vidas de dois companheiros nossos, Pedro Fabro e José de Anchieta? Dois homens que levaram adiante missões tão diferentes e, no entanto, tão semelhantes no espírito jesuítico que deve animar nossa missão. Os dois, com a intensidade de suas vidas, convidam-nos a descobrir que “restauração”, mais que ser para nós um mero acontecimento histórico, deve representar o ‘modo de ser’ sempre presente, em um corpo apostólico em contínua recriação.
José de Anchieta, “de estatura mediana, magro, pelo vigor de seu espírito forte e decidido, moreno, de olhos azuis, fronte larga, nariz grande, barba rala, de semblante alegre e amável”, gastou 44 anos de sua vida percorrendo boa parte da geografia do Brasil e levando a boa nova do Evangelho aos indígenas.
Terceiro dos dez filhos que teve a família López de Anchieta y Díaz de Clavijo, José de Anchieta nasceu em Tenerife (Espanha), em 1534. Parente pela linhagem paterna da família dos Loyola, por suas veias corria, como herança dos avós paternos, sangue de judeus convertidos. Logo foi enviado para estudar na Universidade de Coimbra (Portugal), durante o chamado triênio de ouro do recém-fundado Colégio das Artes. Sua vocação à vida religiosa nasceu em um clima de ideias e liberdades morais que não a favoreciam, talvez estimulado pelo exemplo de alguns companheiros jesuítas influentes na universidade. De fato, as cartas de Francisco Xavier comoviam a juventude universitária de toda Europa.
Admitido ao Noviciado da Companhia na Província de Portugal, em 1º. de maio de 1551, logo contraiu uma grave tuberculose ósseo-articular, que aos 17 anos de idade lhe provocou uma visível curvatura na coluna. Sua angústia de ser considerado inútil para o apostolado se viu muito aliviada ao escutar as consoladoras palavras do Pe. Simão Rodrigues, fundador da Província portuguesa: “Não se preocupe por essa deformação, Deus lhe quer assim”. Havia uma esperança no ar: começavam a chegar do Brasil as cartas do Pe. Manuel da Nóbrega, que ponderavam o quão saudável era para qualquer tipo de enfermidade o clima daquelas terras. E para lá partiu Anchieta, em 8 de março de 1553, tendo feito recentemente os primeiros votos, aos 19 anos de idade, na terceira expedição de jesuítas que embarcava para o Brasil.
Deparamo-nos já com o primeiro dos paradoxos desse jovem jesuíta: o forte contraste entre sua fragilidade física e a intensa vitalidade apostólica que desenvolveu ininterruptamente durante 44 anos, atravessando numerosas regiões do Brasil, até sua morte aos 63 anos. A vida de José de Anchieta é apostólica e radicalmente evangélica. “Não basta sair de Coimbra – dizia a seus irmãos doentes que ficavam ali – com uns fervores que logo se desfazem antes de cruzar a linha (do Equador), ou que logo se esfriam, com desejos de voltar a Portugal. É necessário levar o alforje cheio, para que as provisões durem até o final da jornada”.
Os desafios da missão atual exigem cada vez mais ‘a revitalização do corpo apostólico’ da Companhia. A fonte na qual bebia a vitalidade apostólica de Anchieta era sua profunda experiência espiritual. A solidez de sua fama de santo e taumaturgo fundamentava-se no amor, na oração, na humildade e no serviço.
Uma das críticas que se fizeram a ele diante do Visitador foi de que “fazia muita caridade”. Aos olhos de seus críticos, seu excesso de bondade estaria na origem de um governo que tendia a ser brando. O Pe. Gouveia, entretanto, não tinha a mesma opinião. Descreve-o como: “homem fiel, prudente e humilde em Cristo, muito querido por todos, ninguém tinha queixa contra ele, nem me é possível encontrar palavra ou ação em que tenha agido mal”. Sincero amigo de todos, sabia unir a bondade ao rigor e à firmeza, como desejava Santo Inácio em todo bom superior. Apesar de suas enfermidades, bem visíveis, o provincialado de Anchieta pôde ser considerado um dos mais dinâmicos e frutuosos de seu tempo.
Dos 44 anos que viveu no Brasil, 40 pelo menos se caracterizaram por uma incessante peregrinação, começando pela região de São Vicente e Piratininga, entre 1554 e 1564, quando da fundação da cidade de São Paulo e seus primeiros anos. Foi uma mobilidade que não lhe impediu de se entregar às aulas de latim e ao estudo mais aprofundado da língua tupi, uma vez que lhe permitia uma grande atividade missionária e catequética. Nomeado provincial, em 1577, e posteriormente superior, percorre casas e comunidades: pai dos pobres, taumaturgo para os enfermos e os que sofriam, conselheiro para os governantes, mas, sobretudo, amigo e defensor dos índios em suas aldeias.
Somente em 1595 a obediência o liberou das responsabilidades de governo. Restavam-lhe dois escassos anos de vida. Neles encontrou ainda tempo para participar na defesa da capitania do Espírito Santo contra as incursões dos índios goitacazes. Seu último destino foi a aldeia de Reritiba. Ali começou a escrever uma “História da Companhia de Jesus no Brasil”, preciosa obra perdida da qual só restam fragmentos.
Não lhe movia, certamente, para levar essa vida itinerante, nenhum espírito de aventura, senão um espírito de disponibilidade para a missão, de liberdade espiritual e de prontidão para buscar e encontrar a todo momento a vontade do Senhor. Acompanhou-o, até o fim, um ardor verdadeiramente apostólico. “Dado que não mereço ser mártir por outra via – escreve ele mesmo – que pelo menos a morte me encontre desamparado em alguma dessas montanhas e ali dê a vida por meus irmãos. A disposição de meu corpo é fraca, mas me basta a força da graça que, por parte do Senhor, não me há de faltar”.
Não deveria ser a itinerância – com tudo o que implica de liberdade espiritual, de disponibilidade e capacidade de discernir e de tomar decisões – uma das características indispensáveis de nosso corpo apostólico? O contínuo peregrinar de Anchieta, quase uma forma de vida, poderia inspirar hoje em dia e estimular nossa busca de mobilidade apostólica, para responder aos desafios que nos propõem as novas fronteiras.
Uma característica de grande relevância na figura humana, espiritual e apostólica de José de Anchieta se manifesta em sua capacidade para organizar estruturalmente a missão, integrando as distintas presenças apostólicas e as diferentes dimensões em um só projeto diversificado e complexo, mas único. E, no centro, dando sentido a tudo, o amor pelos índios: “sinto os índios, escreve ele mesmo, do seu último refúgio na aldeia de Reritiba, mais próximos que os portugueses, porque é por eles que vim ao Brasil”.
Com o Pe. Nóbrega, participou na primeira fundação do Rio de Janeiro. A segunda e definitiva fundação não se levaria adiante senão dois anos depois, com ajuda de uma esquadra vinda de Portugal, capitaneada pelo próprio governador Mem de Sá. Na ocasião, Anchieta escreveu sua primeira obra em latim: De gestis Mendi de Saa. Pertence a essa época também o auto sacramental intitulado “Pregação universal”, inspirado na cerimônia indígena de acolhia aos personagens ilustres, com o qual introduzia na língua tupi a técnica do verso e das estrofes, típica do teatro português. Sempre soube colocar a serviço da missão seus extraordinários dons de perfeito humanista: seu domínio da gramática, seu gosto pelos clássicos latinos e sua habilidade na arte da oratória. Com enorme fecundidade, compôs em tupi os “Diálogos da fé” (catecismo maior para a instrução dos índios na doutrina cristã), adaptou opúsculos para a preparação ao batismo e para a confissão e concluiu a gramática da língua mais usada na costa do Brasil, o tupi.
Sempre agente de reconciliação, empenhou-se profundamente no diálogo com os índios tamoios, até o ponto de ser tomado como refém e de viver entre eles sequestrado por cinco meses. Feitas as pazes com os tamoios e posto em liberdade, ainda teve forças para retornar a São Vicente e escrever o poema à Virgem De Beata Virgine Dei Matre Maria. Não lhe intimidou a carência de papel. Dístico por dístico foi escrevendo sobre a areia e memorizando aqueles mais de 5.800 belíssimos versos.
O folclore popular, adaptado como música religiosa, servia-lhe para a representação de “autos” em português e tupi. Era incessante sua atividade para enriquecer o ministério pastoral e catequético entre os índios com representações teatrais festivas. Considerava imprescindível aproximar-se da psicologia indígena.
São muitas as razões que temos para estar agradecidos ao Papa Francisco por propor ao mundo, com o novo destaque da santidade, o exemplo de José de Anchieta. Para a Companhia de Jesus é uma ocasião de restaurar com intensidade a busca daqueles horizontes que ele perseguiu e que são sempre novos: a sensibilidade diante da diversidade étnica e a pluralidade religiosa, cultural e social; o desenvolvimento incansável de uma nova liberdade criativa e de uma responsável capacidade de improvisação; a busca constante de expressões inculturadas para a experiência cristã e evangelizadora.
Que este novo intercessor nos ajude a buscar cada vez com maior empenho a vontade de Deus e a cumpri-la sem descanso.
Fraternalmente no Senhor,
Adolfo Nicolás, S.I.
Superior Geral
Roma, 3 de abril de 2014 (Original: español)
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