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Em novo livro, padre Gasda fala sobre ética nas organizações

O padre Élio Estanislau Gasda é autor de vários livros. Em sua mais recente obra, Economia e bem comum. O cristianismo e uma ética da empresa no capitalismo, lançada pela editora Paulus, o jesuíta aborda a questão ética inerente à atividade empresarial e reflete sobre seu significado à luz do Cristianismo. Confira a entrevista do jesuíta:

O que o motivou a escrever o livro?

O interesse surgiu logo no início das pesquisas acadêmicas sobre mundo do trabalho, Capitalismo e Doutrina Social da Igreja. Alguns resultados já vieram a público em forma de três publicações. Este livro sobre a ética da empresa faz parte desse projeto amplo e de longo prazo. Suas primeiras linhas surgiram em 2010, a partir de anotações oferecidas nos Encontros de Reflexão para Dirigentes de Empresa, organizados pela ADCE/MG, de cursos de extensão promovidos em parceria com a Faculdade Jesuíta (FAJE) e Centro Loyola de BH e de estudos com a ADCE/MG sobre Doutrina Social da Igreja. Outra motivação brotou da constatação do preocupante desgaste sofrido pelas empresas nos últimos anos, por meio dos consecutivos escândalos corporativos, exploração brutal de mão de obra, fraudes em licitações, desastres ambientais ─ como o de Mariana (MG)─, sonegação fiscal, corrupção de políticos e magistrados de alta corte, etc. Keynes define as economias capitalistas como economias empresariais.

 

O que podemos entender por ética dentro do contexto da obra?

O foco do livro é a empresa, uma das instituições mais importantes do século XXI, ao lado do mercado, do Estado e da sociedade civil. O ponto de partida é a pessoa humana, pois, como ensina a Gaudium et Spes, “nas empresas econômicas, são pessoas as que se associam, isto é, homens livres e autônomos, criados à imagem de Deus” (GS, n. 68). Qualquer ética começa com o reconhecimento da dignidade humana.

“A ética é uma ciência que estuda os valores, os princípios e a normatividade moral. É um saber prático que pergunta pelo comportamento humano. Portanto, a ética da empresa é muito concreta, não é um idealismo inalcançável.”

A ética é uma ciência que estuda os valores, os princípios e a normatividade moral. É um saber prático que pergunta pelo comportamento humano. Portanto, a ética da empresa é muito concreta, não é um idealismo inalcançável. Em que consiste um bom comportamento empresarial? Que valores transmite e que princípios defende? Que tipo de relações são promovidas no interior de uma empresa?

A obra parte da concepção de empresa como uma organização econômica criada e mantida por pessoas. Ela não se reduz a seus membros. São instituições, são conhecidas e avaliadas por seus atos perante o estado, a sociedade civil, os funcionários e o meio ambiente. A partir da Revolução Industrial, ser empresário passou a significar o exercício profissional de uma atividade econômica de uma entidade jurídica com direitos e obrigações. Mas quem é o principal responsável pelas decisões da empresa? Todos os componentes materiais e as demais instâncias do capitalismo encontram-se na empresa. A gestão da empresa não se baseia unicamente na mão invisível, mas em decisões de pessoas com valores, interesses e princípios. A empresa não é norteada apenas pelo cumprimento do interesse dos acionistas, mas também por outros interessados, como os funcionários, a comunidade local, o consumidor, os fornecedores, as autoridades públicas, os concorrentes e o cuidado ambiental.

 

Qual o significado do conceito de bem comum?

Papa Francisco, na Evangelii gaudium, afirma que “a vocação de um empresário é uma nobre tarefa, sempre que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto lhe permite servir verdadeiramente ao bem comum, com seu esforço por multiplicar e tornar mais acessíveis os bens deste mundo para todos. (EG, n. 203).

Na economia, cada um deve ter claro o objetivo que busca. Ele pode ser o bem comum ou a acumulação privada de capital. O capitalismo orienta as pessoas a maximizar seus ganhos sem levar em conta o conjunto da sociedade. A ética católica é ética do bem comum, um conceito baseado no princípio de que cada pessoa tem um valor inalienável. Não é possível aumentar a riqueza individual ou PIB da nação sacrificando a saúde, a educação e outros direitos sociais da maioria da população. Sendo comum, o bem comum considera a pessoa como ser social. O bem comum é o bem próprio da vida em comum: da dignidade, unidade e igualdade de todas as pessoas deriva o princípio do bem comum. A determinação do bem comum tem como eixo a dignidade humana.

O bem comum amplia as responsabilidades da empresa com a sociedade. O primeiro bem comum é a humanidade. A natureza pertence ao bem comum da humanidade. Fazem parte do patrimônio comum os bens públicos a serviço da vida, como os alimentos, as sementes, a eletricidade, as comunicações, a sabedoria e o conhecimento acumulados pelos povos e pela ciência, pelas culturas e pelas artes. O bem comum aponta para uma empresa mais amiga da humanidade e da natureza.

 

A obra foi organizada em três grandes partes: a primeira, Ética, economia, empresa, capitalismo; a segunda, Doutrina Social da Igreja; e a terceira, Espiritualidade. Qual a principal abordagem em cada uma dessas partes?

A primeira identifica os conceitos centrais do livro: Ética, Economia, Empresa e Capitalismo.  Situa a ética empresarial no interior da ética econômica e contextualiza a empresa tanto nas origens do capitalismo quanto na forma como se apresenta no século XXI. Em seguida, descreve as tentativas de integrar a ética na empresa. Atualmente, quais seriam as grandes provocações da sociedade para a empresa? A segunda parte aborda a contribuição da Doutrina Social da Igreja e visita os documentos do Magistério. A partir do subsídio A Vocação do líder empresarial, aprofunda os dois pilares dessa contribuição, a dignidade humana e o bem comum. A abordagem das suas possibilidades operacionais encerra essa Parte.

A terceira parte aborda a integração da espiritualidade na direção da empresa. Muitas pessoas sentem-se divididas entre quem são como cristãos e quem são como profissionais. O Cristianismo pode contribuir na busca dessa integração entre fé e vida profissional. Nos dois últimos capítulos, o livro acolhe a contribuição de dois cristãos envolvidos diretamente com a empresa. Carmen Migueles, professora da Fundação Getúlio Vargas, reflete sobre os desafios de uma gestão orientada por valores que brotam da fé. O bem que as empresas podem fazer é o título do capítulo-relato do Presidente da UNIAPAC–América Latina, Sérgio Cavalieri. O empresário mineiro articula os temas tratados no livro com sua experiência empresarial. A UNIAPAC trabalha na formação de líderes de empresas para que pratiquem, na gestão de seus negócios, os mesmos valores que professam como cristãos.

 

Na introdução do livro, o senhor fala que o reducionismo técnico exilou a ética dos espaços de decisão. Qual o impacto disso no dia a dia das organizações e dos funcionários?

O reducionismo técnico citado no livro remete ao conceito de paradigma tecnoeconômico utilizado por Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí (n.101, 106-114).  As tecnologias colocaram à disposição novas formas de poder derivadas desse reducionismo técnico e do mito do progresso (LS, n.78). O reducionismo técnico busca apenas soluções técnicas para cada problema que aparece. Ora, a realização de escolhas, tanto na ordem dos fins quanto na ordem dos meios, supõe a ética. Que fins devem orientar a atividade empresarial? Quais os meios para alcançar os fins escolhidos (técnica utilizada)? Tais meios são éticos, aceitáveis, racionais? O livro defende uma vinculação entre sentido moral e sentido técnico nos diversos âmbitos de decisão da empresa. Sendo a ética intrínseca à vida empresarial, por que excluí-la das decisões? Os escândalos provocados por uma empresa são escândalos provocados por pessoas desprovidas de princípios éticos.

 

A concorrência e o contexto competitivo das organizações influenciam a ética das pessoas na organização?

Valores e princípios morais são tão importantes quanto benefícios econômicos. O mundo dos valores revela o caráter de um profissional. A ética introduz a noção de mínimos éticos àqueles que devem estar contemplados pelos contratos e estatutos previstos na legislação. Ninguém deveria situar-se por debaixo desses mínimos. Se alguém deseja alcançar graus acima das exigências mínimas, propõe-se uma ética de máximos, ou seja, com os valores que realmente orientam seu caráter. A ética de máximos é o parâmetro para quem desejam exercer um papel importante para uma mudança cultural que ajude a corrigir os mecanismos geradores de injustiça social. Um estilo de vida que não nasce a partir de uma obrigação legal, mas de convicções interiores. Esse seria o horizonte ético ideal. Uma utopia? Talvez.

“Valores e princípios morais são tão importantes quanto benefícios econômicos. O mundo dos valores revela o caráter de um profissional.”

 

O sujeito pode acabar anulando-se perante os modelos estabelecidos pelas empresas?

É difícil a tarefa de articular a moral da pessoa com a cultura da organização. Cultura moral é a forma que adota a moralidade quando se converte em assunto coletivo. A relação entre ética do sujeito e a cultura organizacional é complexa. O indivíduo ingressa em uma organização que já possui uma cultura moral e à qual deve adaptar-se. Sua decisão e ação deixam de ser exclusividade dele para pertencer à organização. A influência dessa cultura organizacional sobre a moralidade do indivíduo ocorre no limite entre o pessoal e o coletivo. Muitas convicções éticas pessoais são colocadas de lado diante das exigências da cultura organizacional. Os espaços de liberdade são reduzidos. A complexidade econômica na qual está envolvido faz com que seja necessário delegar muitas decisões em primeira pessoa do plural. Em alguns casos, sequer há tempo hábil e disposição necessária para tomar a decisão mais justa. A empresa é uma verdadeira arena de conflito de interesses. Até que ponto uma determinada decisão é realmente pessoal e, portanto, responsável moralmente por ela? A responsabilidade moral é um correlato da intencionalidade, da inteligência e da liberdade no ato de uma determinada ação. É inevitável colocar as finalidades da empresa acima das próprias intenções. Os sujeitos confundem-se.

 

Qual as responsabilidades das empresas perante a sociedade e os funcionários?

A sociedade está mais atenta diante da poder econômico da empresa. As empresas estão sujeitas a uma investigação mais criteriosa por parte dos consumidores, trabalhadores, conselheiros, sócios e acionistas, a comunidade, organizações não governamentais, estudantes, patrocinadores, doadores, investidores e outras entidades. As redes sociais estão vigilantes!

Do ponto de vista ético, a responsabilidade é proporcional ao poder: maior poder, maior a responsabilidade. As empresas têm muitas responsabilidades sociais. Uma delas é atender as necessidades dos consumidores do presente dentro dos limites ecológicos do planeta, sem comprometer as necessidades dos consumidores do futuro. A sustentabilidade da empresa deve ser compatível com a sustentabilidade da sociedade: uso sustentável de recursos naturais, consumo sustentável, estilos de vida sustentáveis. Outra grande responsabilidade é a transparência social: obrigações nas áreas de direitos humanos, direito tributário, direitos trabalhistas e meio ambiente. A sociedade cobra políticas de igualdade racial e de gênero no trabalho, por exemplo. Condutas irresponsáveis no campo da justiça social e ambiental comprometem seriamente a imagem junto à sociedade. Os recentes escândalos envolvendo grandes empresários são a prova disso. A empresa, sem deixar de ser competitiva, deve buscar integrar benefícios econômicos dentro desse novo contexto.

 

 Qual a importância da atuação dos líderes das empresas?

O empresário e o dirigente revestem uma importância central na sociedade, porque estão no coração daquela rede de liames técnicos, comerciais, financeiros, culturais, que caracterizam a economia contemporânea. As decisões empresariais produzem uma multiplicidade de efeitos conjuntos de grande relevância não só econômica, mas também social. Seu papel social impede que levem em conta exclusivamente o objetivo da empresa, a eficiência econômica, as exigências do capital financeiro e dos poderes públicos. Não há forma de separar decisões estratégicas empresariais dos valores morais dos dirigentes, pois são eles que tomam as decisões. No entanto, não se trata de uma ética reduzida aos valores subjetivos, mas que busca um dever ser junto aos acionistas e à sociedade.

No interior da empresa, cabe aos dirigentes o importante papel de organizar um trabalho bom e produtivo. Promover oportunidades iguais para funcionários de todas as hierarquias, com respeito em relação a cor, raça, gênero, idade, etnia ou credo religioso. Realizar esse trabalho sem tratamentos inaceitáveis para o trabalhador, como a exploração de crianças, punições físicas, abuso à mulher, trabalho forçado involuntário e outras formas de abuso. Respeitar a liberdade voluntária dos empregados de associação. Apostar no princípio da subsidiariedade, que promove o espírito de iniciativa e companheirismo entre os funcionários, considerados como coempreendedores.

 

 O senhor cita o subsídio A vocação do líder empresarial como uma das referências do seu livro. Qual a importância desse documento?

Em 2013, o Conselho Pontifício Justiça e Paz lançou esse subsídio que aborda os princípios sociais católicos aplicados aos desafios empresariais. Nele, a proposta da Igreja para uma ética de empresa alcança sua maturidade. O subsídio quer comprometer os líderes empresariais com os princípios da dignidade humana e do bem comum. O texto oferece um conjunto de princípios práticos inspiradores: satisfazer as necessidades do mundo com bens que sejam verdadeiramente bons e sirvam verdadeiramente, sem esquecer, num espírito de solidariedade, as necessidades dos pobres e dos vulneráveis; o princípio de organizar o trabalho no interior das empresas de modo que respeitem a dignidade humana; o princípio da subsidiariedade, que promove o espírito de iniciativa e aumenta a competência dos empregados, considerados como ‘coempreendedores’; e, finalmente, o princípio da criação sustentável da riqueza e sua justa distribuição entre os diversos interessados.

Quero concluir com uma citação do próprio livros: “A lógica de mercado é fria, busca resultados de curto prazo, maximização de resultados financeiros, tem a ver com dinheiro e não com pessoas. A lógica da ética cristã se assenta em valores da dignidade humana e do bem comum. ‘Faça ao outro o que gostaria que lhe fizessem’ é a regra universal para que o esforço de empreender resulte em gente feliz, com brilho nos olhos, com ideais e sonhos realizados, bem viver”. (Sérgio Cavalieri, p. 348).

 

Serviço

Livro: Economia e bem comum. O cristianismo e uma ética da empresa no capitalismo.

Editora: Paulus

Ano: 2016

Páginas: 352

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*O padre Élio Estanislau Gasda é professor-pesquisador da área de Ética Teológica e Práxis Cristã na FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia), investigador da equipe de Pensamento Social da Igreja da ODUCAL (Organização das Universidades Católicas da América Latina, do CELAM-Conselho Episcopal Latino-americano), membro do Grupo de Trabajo Teología, Ética e Política (CLACSO-Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) e do comitê central da Rede Mundial de Ética Teológica. Além de membro do Fórum Permanente de Interlocução sobre Justiça Socioambiental da BRA (Província dos Jesuítas do Brasil).

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