Sempre em trânsito, Pe. Franklin Alves Pereira encontrou na Companhia de Jesus um de seus tantos lugares. Amante da língua portuguesa e da poesia, o jesuíta nos conta sobre suas peregrinações, originadas no ventre materno, e sobre sua sede por justiça, que entende como o “fruto de uma profunda experiência com Deus”. Em entrevista ao informativo Em Companhia, padre Franklin relembra um pouco de sua história de vida e conta de suas vivências na atual missão. Confira:
- Conte-nos um pouco sobre a sua história, família, onde nasceu.
Nasci em Santo André (SP), no dia 4 de junho de 1977. Era o ano da serpente no calendário chinês. Sou o filho do meio de nordestinos alagoanos de São José da Tapera. Quando eu tinha um ano, meus pais resolveram deixar o Estado de São Paulo e voltar para o Nordeste. Lá, cresci entre os estados de Sergipe e Alagoas.
Desde cedo, eu ganhei o mundo! Quando tinha quinze anos de idade, entrei no Seminário Menor da Arquidiocese de Aracaju (SE) e lá fiz o ensino médio. Mas, movido pela inquietação, deixei o seminário e voltei para a casa dos meus pais. Sempre tive dificuldade em ficar no mesmo “lugar” por muito tempo. Depois, descobri que a minha história de vida me deu estas palavras: travessia – memória – adaptabilidade.
Desde o ventre materno, sou um peregrino. Minha família e eu tivemos de mudar de lugar tantíssimas vezes por melhores condições de vida. Desde o ventre materno, também, acostumei-me a ouvir o meu nome e a gostar dele. Meus pais me disseram que, antes mesmo do meu nascimento, eles e o meu irmão mais velho já me chamavam pelo meu nome: Franklin. Fui esperado e, talvez por isso, mesmo vivendo em situações limites com a minha família, não me senti des-esperado. Tive de atravessar tantos lugares… De deixar tantas pessoas… De me adaptar tão rapidamente… E o modo que encontrei para lidar com o “não lugar” foi a poesia. Então, comecei a escrever quando tinha 12 anos. As imagens, a fantasia e as palavras se transformaram num modo de gerar… Depois, desenvolvi a paixão pelo hífen (-) e pelas reticências (…). Quando escrevo, separo as palavras com hífens e, assim, crio um “lugar” onde eu posso ressignificar a minha dor. Um hífen é tão pequeno! Ele separa e junta ao mesmo tempo ped-aços da palavra, criando uma abertura ou lugar por onde um novo significado pode nascer. Apaixonei-me, também, pelas reticências porque elas permitem que a imaginação continue fluindo… para outro “lugar”.
- Como conheceu a Companhia de Jesus? Por que decidiu ser jesuíta?
Depois que eu deixei o Seminário Menor e voltei a morar com a minha família, nós já tínhamos um lugar nosso: a casa onde meus pais moram ainda hoje em Aracaju. Mas a minha inquietação me fez voltar para o Seminário Maior de Aracaju e continuar a formação para ser padre diocesano. Lá, fiz a Filosofia. Nesse período em que voltei para o Seminário durante os estudos filosóficos, conheci a Companhia de Jesus. Os primeiros jesuítas com quem tive contato foram viver, durante o período do Natal, na comunidade, ou favela, onde nós morávamos. Percebi que tinha algo de bom, diferente e estranho ao mesmo tempo naqueles rapazes! Algo que eu queria para mim… Que eu podia sentir, mas não era capaz de agarrar!
A experiência de miséria e pobreza na qual vivi transformou a minha inquietação em re-volta! A Filosofia ajudou que aquela minha revolta se tornasse sede de justiça. Eu não entendia porque, num país de maioria cristã quase absoluta, onde celebrávamos a Eucaristia, existiam pessoas que desperdiçavam dinheiro e tantas outras que não tinham o que comer… Ou comiam o que sobrava “das mesas dos ricos cristãos”. Nós comíamos no café da manhã bolachas queimadas que o meu pai comprava por centavos na fábrica que ficava no caminho entre o local de trabalho dele e a nossa comunidade. Aquelas bolachas queimadas, que me pareciam hóstias rejeitadas e que nós comíamos acompanhadas por um café preto… eram o sacramento da desigualdade social celebrado todos os dias… até hoje. Quando adolescente, fui coroinha na minha comunidade e, quase sempre, tinha a impressão de que a Eucaristia que celebrávamos era como um faz de conta… Um teatro… porque o mesmo “lugar” onde celebrávamos, no final de semana, era onde, durante a semana, as pessoas paravam os caminhões de lixo para pegar deles o que comer, antes que eles jogassem o “lixo” fora.
Minha sede de justiça, com sabor de revolta, ganhou outro tom quando conheci os jesuítas que foram viver conosco na nossa comunidade. Eles, também, tinham sede de justiça! Aquilo me inquietou tanto que, depois de ter conversado seriamente com o mestre de noviços Padre Acrízio Sales e ter pedido permissão ao meu bispo Dom José Palmeira Lessa, fui morar na comunidade vocacional em Fortaleza (CE) em 2002, logo depois de ter terminado o estudo de Filosofia. Era o ano da serpente. Mudei de lugar, mais uma vez…
- Quais as experiências mais marcantes que o senhor vivenciou durante sua formação como jesuíta?
Na comunidade vocacional, fui apresentado aos Exercícios Espirituais (EE) de Santo Inácio e, então, comecei a entender o que era aquela coisa boa que aqueles simpáticos jesuítas transpiravam. Terminada a experiência de discernimento em Fortaleza, fui admitido no Noviciado da Companhia de Jesus.
As minhas experiências marcantes, durante a formação, estão ligadas a lugares. A primeira experiência, ou lugar, foi o Noviciado Nossa Senhora da Graça em Feira de Santana (BA). Ali, pude fazer uma profunda experiência de Deus em Jesus Cristo, animada pelo Espírito Santo. Então, descobri e entendi o que aqueles jesuítas que conheci em Aracaju tinham encontrado! Algo que, ainda, não sei explicar direito, mas acredito que você, que está lendo este texto e fez os EE, sabe do que estou tentando falar… A sede de justiça era fruto de uma profunda experiência com o Deus de Jesus Cristo. Tenho a impressão de que uma “profética sede de justiça” que não nasça de uma profunda experiência de Deus seja apenas puro desejo de vingança. Como também acredito que uma “profunda experiência de Deus” que não faça nascer uma profética sede de justiça seja apenas devaneio. Falsos profetas e falsos místicos são faces da mesma moeda: um narcisismo desequilibrado. A experiência com os EE deu à minha experiência poética cor, cheiros, sabores, sons, toque, pele… A minha existência tem se transformado em vida. A experiência de Deus tem transformado a minha vida em lugar fecundo que inclui o outro. Depois, descobri que a mística judaica fala de Deus com O LUGAR: ha-maqom. Esse mesmo Deus que nos coloca num lugar espaçoso quando gritamos porque estamos na angústia ou lugar apertado (Sl 118,5).
A segunda experiência, ou lugar, está sendo Roma (Itália). Morar fora do país possibilitou re-ver a minha história, a história do Brasil e da Companhia de Jesus. Conhecer pessoas e lugares tão diferentes. Encontrar desafios que, às vezes, querem me parecer insuperáveis! Entrar em contato com uma sociedade pós-cristã. Conhecer países onde a pobreza não existe e onde tudo funciona. Estudar profundamente… Tudo isso tem me feito colocar entre aspas (“”) tanta coisa… Depois de ter me apaixonado pelo hífen e pelas reticências, ultimamente, começo a ter um caso com as “aspas”.
Não terminei, ainda, a formação na Companhia de Jesus, mas sou profundamente grato à Companhia por ter me feito experimentar tantos “lugares”. Para alguém, como eu, que tem como sombra o “não lugar”, viver em diferentes lugares dá “pele” que, com as experiências, vai sendo trocada. As serpentes trocam de pele quando crescem.
- Atualmente, o senhor está fazendo o seu doutorado em Teologia Bíblica, em Roma. Como este tempo de pandemia tem afetado seus estudos? Qual a contribuição da Teologia para este momento?
Fui ordenado presbítero no dia 9 de junho de 2012, festa de São José de Anchieta. Em seguida, fui enviado a Roma para começar uma especialização em bíblia. Atualmente, faço um doutorado em teologia bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. Agora, encontro-me no Brasil porque precisava resolver algumas questões de ordem prática. Sou hóspede na comunidade Nossa Senhora da Estrada, em São Paulo (SP), enquanto espero a reabertura das fronteiras da Europa para que eu possa voltar para casa. Embora eu me sinta muito bem acolhido na comunidade que me hospeda, tenho a sensação de ser um estrangeiro na minha própria terra porque não sei quando vou poder voltar para a minha comunidade de referência, que é o Collegio San Roberto Bellarmino. Vivo uma estranha experiência porque sinto como se não estivesse no meu “lugar”. Ultimamente, tenho rezado esta experiência de estar fora do meu lugar… Então, Percebi que voltei para São Paulo: o lugar onde toda esta minha história começou, em 1977. Aqui, tenho parentes, amigos e companheiros jesuítas que não posso visitar porque estamos todos dentro de casa por causa da pandemia. Ficar num mesmo lugar por muito tempo me inquieta, mas tenho vivido este momento como uma experiência “salmônica”. Os salmões voltam para o lugar onde eles nasceram e, depois de enfrentar muitas dificuldades no percurso de volta, se reproduzem e morrem. Este tempo de ficar em casa, tem sido um tempo fecundo. Um estranho tempo fecundo, vivido num momento marcado por tantas mortes!
A crise global provocada pela covid-19 parou o grande baile de máscaras da humanidade e nos fez perguntar pelo essencial. Gosto de resumir tudo isso na palavra ambiguidade. A humanidade é ambígua e a teologia pode contribuir neste momento das máscaras e no pós-máscara, quando passar a pandemia. Mas eu prefiro falar de teo-poética das ambiguidades.