Entrevista com Paulo Roberto, organizador da obra de Manuel da Nóbrega

Durante a 18ª Bienal Internacional do Livro Rio, realizada entre os dias 31 de agosto e 10 de setembro, foi lançado o livro Obra completa de Manuel da Nóbrega, publicação editada pelas Edições Loyola e pela Editora PUC-Rio (2017) e organizada por Paulo Roberto Pereira. Em entrevista ao Jornal da PUC Online, o organizador do livro fala um pouco mais sobre a importância da obra.

 

Como nasceu a ideia do livro?

O livro celebra os 500 anos de nascimento de Nóbrega. Ele nasceu em 18 de outubro de 1517, mesmo ano em que Martinho Lutero iniciou a reforma protestante. É um ano chave na História. Além disso, o último livro que traz os textos do Nóbrega é de 1955, feito por Serafim Leite. Esta edição não traz os textos de Nóbrega na ortografia atual. Se você não é um estudioso do século XVI, não conseguiria entender os textos, pois há alguns que só especialistas conseguem ler. Eu já havia feito o mesmo com a Carta de Caminha, sem tirar palavras. Já tinha a experiência de ter editado a Carta de Caminha e trabalhado com textos quinhentistas. Sou discípulo de grandes especialistas em critica textual. O texto, para mim, é algo sagrado. A maioria das coisas escritas nestes textos qualquer leitor entende, quando atualizados para a ortografia atual. Com isso, oferece-se ao leitor brasileiro a oportunidade de saber o que escreveu de fato o seu primeiro escritor. Não limpei o texto. Quando aparece alguma palavra considerada arcaísmo, já em desuso, coloco uma nota. Se há um personagem que ele (Nóbrega) cita na obra e ninguém conhece, coloco uma referência. Com isso, tornei mais acessíveis os textos do Nóbrega.

 

A atualização ortográfica revela-se, então, a principal diferença em relação a publicações anteriores também dedicadas à obra de Manuel da Nóbrega? Qual a grande contribuição deste lançamento?

A ortografia atualizada para as normas de hoje vai ajudar as pessoas a terem uma visão mais honesta e verdadeira de Nóbrega. O mais cômodo, em geral, é colocar a pessoa numa espécie de altar, não querer ler o que escreveu para não se decepcionar, caso não seja o que a gente realmente espera. Penso exatamente o contrário: temos que ler todos os textos da pessoa, por mais que ela esteja em um pedestal, exatamente para ver qual era ao pensamento dela em uma determinada época e em um determinado contexto. Por exemplo, é preciso entender como Nóbrega aborda a questão do escravo. Tudo faz parte de um contexto da época. Como aluno de Salamanca, ele era totalmente contra a escravidão do índio, o que não quer dizer que ele fosse a favor de hábitos como antropofagia ou da poligamia. No Brasil, há um debate muito grande, especialmente, por parte dos nossos antropólogos, sobre a questão do índio. Todos criticam Nóbrega e [padre José de] Anchieta por terem perseguidos índios. Com a permissão dos nossos grandes antropólogos e seus grandes estudos sobre a realidade indígena brasileira, quero revelar, tornar acessível os textos de Nóbrega para que as pessoas vejam que ele não era contra o índio, mas contra certos costumes indígenas, como a antropofagia. Se não fossem os jesuítas, não estaríamos aqui com esse país e essa população. Sou a favor dos índios, acho admirável o trabalho de tantos antropólogos. É diferente, no entanto, defender a manutenção dos índios como um ícone eldorado, em um espaço em que não pode ter acesso à educação, saúde e escola. Sou contra isso.

“Ele foi um verdadeiro brasileiro. Não há uma frase de Nóbrega que indique arrependimento de ter vindo ao Brasil. Estes homens, Nóbrega e Anchieta, se dedicaram de corpo e alma ao Brasil”

 

As cartas de Nóbrega mostram uma transformação da ação missionária de cunho político e religioso para uma perspectiva visionária do Brasil. Como isso se deu?

Nóbrega foi um dos primeiros escritores do nosso país a traduzir, em seus textos, um dos mais ricos e amplos quadros da realidade brasileira quinhentista. Ele foi um verdadeiro brasileiro. Não há uma frase de Nóbrega que indique arrependimento de ter vindo ao Brasil. Estes homens, Nóbrega e Anchieta, se dedicaram de corpo e alma ao Brasil. Ninguém é mais brasileiro do que Nóbrega e Anchieta. Quando escrevi sobre Nóbrega nunca pensei nele como português. Nóbrega salta na Bahia. Ele chega e faz um grande trabalho na Bahia. Conhece as lideranças locais e começa a compreender o universo mental do índio. Depois de tomar consciência da realidade do Brasil a partir da Bahia, Nóbrega viaja com o governador geral Tomé de Souza, em 1552, rumo ao sul do Brasil. Entra, pela primeira vez, na Baía de Guanabara e passa cerca de um mês no Rio. Depois, Tomé de Souza o manda a São Vicente, atual São Paulo. Quando desce lá, Nóbrega começa a ter noção da grandeza geográfica do país e começa a planejar um Brasil maior do que o que os portugueses tinham herdado do Tratado de Tordesilhas. O tratado de Tordesilhas, de 1494, deixava a parte portuguesa mais ou menos até a ilha de Santa Catarina, mas Nobrega pensava até em incorporar o Paraguai, entrando no domínio espanhol. Essa visão futurista do Brasil inicia-se com Nóbrega. Em janeiro de 1554, seus grupos fundam São Paulo e ele começa a mandar correspondência para Portugal, pedindo ajuda militar para desalojar os franceses da Baia de Guanabara, considerando um local estratégico ao avanço para o Sul. Isso só vai acontecer dois séculos depois, em 1763, com a transferência da capital para o Rio. A ideia do Nóbrega, na década de 60 do século XVI, vai se concretizar no século XVII. Ele tinha a consciência de que o Brasil poderia se transformar num país de dimensões continentais, o que acabou acontecendo.

 

Como a história do Brasil colonial passou a ter um peso central na sua carreira?

Paulo Roberto Pereira – Sempre fui apaixonado pela história colonial porque nasci em um bairro jesuítico no Rio de Janeiro: Santa Cruz. Santa Cruz dos meus avós e dos meus pais era um bairro que cultuava os monumentos jesuíticos. A primeira fazenda dos jesuítas aqui no Rio era em Santa Cruz. Era um local tão importante que, quando o Papa extingue a Companhia de Jesus do século XVIII, os bens passam para o Estado português. Quando Dom João chega no início do século XIX, torna o local seu palácio de verão. Era de tal grandeza, que a família real utilizava as instalações do palácio jesuítico. A origem da Companhia de Jesus é um pouco diferente das outras. Foi fundada em torno de 1540 por intelectuais estudantes da Universidade de Paris (França). Não é uma ordem como a franciscana, por exemplo, em que basta a pessoa ser boa e cuidar dos pobres. Na Companhia de Jesus, a educação, o saber, o conhecimento têm um peso muito grande. Manuel da Nóbrega foi um intelectual. Filho de um grande desembargador de Portugal, estudou na Universidade de Salamanca (Espanha), uma das cinco maiores da Europa na época. Salamanca disputava com Paris, Oxford (Inglaterra), Bolonha (Itália), entre as principais universidades da Renascença. Nóbrega era um homem muito culto, dominava o latim e o espanhol. Era um retrato da Companhia de Jesus, um intelectual que sai em uma aventura rumo ao desconhecido, ajuda na construção de um país. Estudo os jesuítas há muitos anos e acho que a Ordem tem esse diferencial do saber em primeiro lugar. Viver em um bairro jesuítico, na infância, teve uma influência muito grande na minha obra. Fui comprando livros, como a obra completa do padre Serafim Leite, principal historiador da Companhia de Jesus. O historiador Capistrano de Abreu dizia que não se podia estudar a história do Brasil sem conhecer a história dos jesuítas no Brasil. Foram muitas figuras que viveram e trabalharam aqui, que dedicaram sua vida ao Brasil. Sempre despertaram meu interesse.

 

Como foi o garimpo deste importante acervo que ajuda a contar a história do Brasil?

O mais curioso sobre esse livro é a dificuldade de ter acesso aos documentos. Hoje, todos acham que se consegue tudo com o Google, mas não é bem assim. Fazer um livro como esse, confrontando as diferentes edições dos textos, é muito difícil. Apesar de eu ter trabalhado uma década na Biblioteca Nacional, lidando com manuscritos e livros raros, livros antigos, o que eu gosto é de ter o livro na mão. Não é fácil ler as primeiras edições de textos assim. A curiosidade, no meu caso, é que praticamente tenho tudo na minha própria biblioteca, que levei a vida toda para formar. Às vezes, mesmo com dinheiro, não se consegue um livro. Nem sempre existe o livro para vender. Muitas vezes, nem mesmo são encontradas edições fac-similares. Fui comprando livros desde meus 14 anos. A minha biblioteca me acompanha onde vou. Não precisei fazer pesquisas em bibliotecas porque já tinha a maioria dos livros raros na minha casa. Apenas consultei alguns manuscritos que estão na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e outros em Portugal. Fui, com frequência, olhar manuscritos em Portugal. Mas os livros, tenho em casa.

 

Fonte: Jornal da PUC -Rio

Compartilhe

Últimas notícias