Refletir sobre a relação entre fé e ciência é de extrema urgência na atualidade. Complexo, muitas vezes, esse assunto é abordado apenas pelo viés da oposição, como se os dois temas fossem antagônicos, medindo forças num eterno cabo de guerra para ver quem ganha a batalha. O conflito existe, sim, mas não são excludentes.
Pode-se dizer que fé e ciência estão, de certa forma, interligadas e que são complementares porque fazem parte do mesmo todo e dão sentido integral à vida. A ciência não é a única fonte de conhecimento e a fé vai além dos valores religiosos e da moral. A fé, por exemplo, pode influenciar positivamente a ciência, assim como aconteceu no desenvolvimento da ética médica moderna. Em contrapartida, a ciência também pode melhorar a vida espiritual daqueles que creem.
Na tentativa de responder a algumas das principais questões acerca dessa relação, o Em Companhia preparou um conteúdo especial sobre o tema e, nas próximas páginas, convidou Marcelo Gleiser, físico brasileiro radicado nos Estados Unidos, Pe. Adelson Araújo dos Santos, jesuíta e professor de Teologia Espiritual na Universidade Gregoriana (PUG) e Pe. Anderson Antonio Pedroso, jesuíta, professor e vice-reitor geral da PUC-Rio, para auxiliar nessa reflexão.
Quando nos deparamos com o tema, algumas das primeiras perguntas que nos vêm à mente são: em que medida ciência e religião se relacionam? Como elas podem, mesmo que por caminhos específicos, estarem a serviço da humanidade?
De acordo com o Pe. Anderson Pedroso, “a ciência e a religião se relacionam de maneira paradoxal: ao mesmo tempo em que são diferentes, elas se atraem. Em suas origens prática e científica, admitiram misturas, hibridismos, misticismo, como, por exemplo, no caso dos alquimistas. Porém, com a emergência da ciência moderna, se estabeleceu uma relação de oposição em que as divergências se tornaram acirradas. Apesar disso, os conflitos entre religião e ciência não são, por si mesmos, negativos. Pelo contrário, podem fazer crescer ambos os lados. A questão é sobre em quais bases se discutem tais conflitos e se há vontade firme de resolvê-los em vista do bem comum. Se a base é racional e há um compromisso ético comum de abertura ao bem comum (humano e socioambiental), então, esse embate é salutar”, avaliou o vice-reitor da PUC-Rio, acrescentando: “Para isso, é importante pensar, tanto a religião quanto a ciência, em termos de conhecimento, isto é, considerar que elas são duas formas de ter acesso (à luz da fé e da razão) às realidades do mundo. São dois saberes que abordam, de maneira diferente, mas não necessariamente de maneira oposta, a imensidão de realidades (materiais ou não) que não conhecemos realmente ou completamente”.
Para o físico Marcelo Gleiser, a ciência vê o mundo como matéria e a fé o enxerga de outra maneira. No entanto, religião, filosofia e ciência são caminhos complementares por meio dos quais a humanidade tenta entender quem é. “A aproximação entre a fé e a ciência se dá de diversas formas, especialmente no que tange a ambas serem manifestações humanas de nossa perplexidade perante o mistério da existência, as perguntas perenes que nos fazemos sobre nossas origens, o significado da vida e nosso fim temporal. Não as vejo como incompatíveis, contanto que se saiba o papel de cada uma em nossas vidas”, afirmou.
Ainda em entrevista ao Em Companhia, Gleiser esclareceu que a função da ciência não é “tirar” Deus das pessoas. Ela é mais uma maneira de entendermos o mundo. “A missão da ciência é descrever a natureza e seu funcionamento da melhor forma possível para nós, humanos. Ela não tem uma agenda antirreligião por definição ou como objetivo. No entanto, muitos veem o avanço do conhecimento científico como uma ameaça à fé religiosa”, disse o pesquisador.
O legado da Companhia de Jesus no campo da ciência
Grande parte do desenvolvimento que a ciência experimentou em seus séculos iniciais veio de pessoas do campo religioso. Os jesuítas, por exemplo, pela sua própria formação, sempre foram homens abertos ao diálogo com a ciência, tendo sido pioneiros em vários campos do saber científico, em todas as partes do mundo e ao longo dos séculos. Para citar alguns exemplos próximos da realidade brasileira, em Salvador (BA), no século XVII, viveu um grande matemático e astrônomo jesuíta, o Pe. Valentin Stansel. Ele notabilizou-se por ter observado e registrado com precisão a passagem de um cometa pelos céus da Bahia, colaborando, assim, com a coleta de dados astronômicos que Isaac Newton fazia para comprovar a teoria da gravidade.
Naquele mesmo século, na Amazônia, o Pe. João Felipe Bettendorf, superior da missão jesuíta no norte, em expedição pelo Rio Amazonas, descobriu o uso medicinal e energético de uma bebida consumida pelos índios Maués, feita por meio de uma semente pertencente à família das sapindáceas, batizada com o nome de cupana, o atual guaraná.
Entre tantos nomes de jesuítas que poderíamos destacar como exemplos do diálogo fecundo que pode e deve existir entre religião e ciência, Pierre Teilhard de Chardin é, sem dúvida, um dos mais emblemáticos. Homem de fé e de ciência, como ele mesmo se autodefinia, Teilhard de Chardin escreveu mais de 250 artigos de pesquisa no campo da paleontologia, além de ensaios filosóficos e teológicos. Ele afirmava que a vida não é uma anomalia inexplicável, mas a criação racionalmente esperada de um movimento cósmico. “Por serem teorias muito avançadas para o seu tempo, Teilhard foi criticado nos meios científico e religioso, mas, hoje, todos reconhecem a importância do seu legado para compreendermos o universo e o lugar do ser humano nele”, explicou Pe. Adelson.
Uma maior aproximação da Igreja
A partir do movimento do Renascimento, a Igreja passou a se preocupar com os meios que possibilitam as descobertas científicas, defendendo que os processos para essa evolução não devem ser à custa de vidas humanas. Ao mesmo tempo, a Igreja compreende que não tem mais a palavra final na ciência. Desse modo, ela busca criar espaços de diálogo, pois entende que o desenvolvimento científico é preciso, mas, para isso, é necessária a ética da religião.
Segundo o Pe. Adelson, o Papa Francisco não tem dúvida da importância do conhecimento científico para a construção de um mundo melhor, com qualidade de vida para todos, e que saiba responder aos grandes desafios que a humanidade hoje enfrenta, como é o caso da pandemia da covid-19 e como são as constantes agressões à Casa Comum, em especial, à Amazônia. “Em setembro de 2020, durante um encontro com um grupo de defensores do meio ambiente da França, Francisco afirmou estar certo ‘de que a ciência e a fé podem desenvolver um diálogo intenso e frutífero’ para mitigar as graves consequências, ‘não somente ambientais, mas também sociais e humanas’, que afetam a humanidade”, recordou o sacerdote jesuíta.
Outro exemplo marcante é a Laudato Si’, encíclica do Papa Francisco, de 2015, na qual a Igreja propõe um novo paradigma para o conceito de ecologia, chamando-a de ecologia integral, isto é, que tem a ver com toda a vida existente no planeta, incluindo a dos próprios seres humanos. Recordando que toda criação é fruto do amor de Deus, o Papa reafirma o dever sagrado que cabe a nós de sermos guardiões e bons administradores dessas obras e criaturas divinas. Em vista disso, ele insiste que “a ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas” (LS, 62). Nessa luta pela salvação do planeta e da própria humanidade, o Papa defende que devemos “construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído” e, para isso, “nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria” (LS, 63).
“Em sua visão de ecologia integral presente na Laudato Si’, o Papa Francisco afirma várias vezes que tudo está interligado e conectado, já que vivemos em uma Casa Comum. Creio que essa mesma imagem pode ser usada para mostrar a interconexão das quatro grandes preferências apostólicas da Companhia de Jesus, indicando que cada uma delas deve buscar responder, dentro do seu campo específico de atuação, aos desafios impostos pela situação global e local, quanto à defesa e à proteção da vida dos mais fracos e mais vulneráveis, como também da nossa Casa Comum”, opinou Pe. Adelson.
Fé e razão: união necessária em tempos de pandemia
Diante dos desafios que vivemos, principalmente, frente à pandemia da covid-19, o caminhar com a fé e com a ciência se tornou primordial. “Em tempos de pandemia, que tem causado tantas mortes e luto nas famílias, mais do que nunca, a fé e a esperança cristã no Deus da vida, que vence a morte pela ressurreição de seu Filho, têm sido essenciais para nos guiar e nos animar. Ao mesmo tempo, devemos valorizar e apoiar todos os esforços que a classe científica e médica fazem para salvar vidas e conter o avanço da doença. A fé cristã não admite fanatismos negacionistas que se opõem à ciência, assim como a ciência deve ser feita com consciência e a técnica com critérios éticos, em vista do bem de todos, começando pelos mais pobres”, ressaltou Pe. Adelson.
É importante destacar que, em defesa da vida e diante do crescimento de fake news e de movimentos negacionistas, a Comissão Vaticana covid-19, em colaboração com a Pontifícia Academia para a Vida, suscitou, por meio de nota, um sério questionamento sobre a responsabilidade de cada ser humano na colaboração para promover o bem comum. No documento, a Igreja destacou o papel essencial dos imunizantes para vencer a pandemia e fez um forte apelo para que as indústrias farmacêuticas desenvolvam vacinas completamente éticas e para que os governos e organizações internacionais as tornem acessíveis a todos, em especial, aos mais pobres.
Ainda sobre a responsabilidade moral de se submeter à vacinação, a Santa Sé reiterou que essa questão envolve “uma relação entre saúde pessoal e saúde pública, mostrando sua estreita interdependência”. A recusa da vacina também pode representar um risco para outros. A nota lembra, entre outras coisas, que “ficar doente leva a um aumento de hospitalizações, resultando em sobrecarga para os sistemas de saúde, até um possível colapso, como está acontecendo em vários países durante a pandemia, dificultando o acesso aos cuidados de saúde, mais uma vez, às custas daqueles com menos recursos”.
No que diz respeito à intolerância e ao crescimento de grupos fundamentalistas antivacina, inclusive no Brasil, Pe. Anderson foi enfático: “Neste momento, a ciência é atacada em nome de uma falsa visão da fé. É preciso denunciar o fato de que alguns se apropriaram da religião, ou melhor, do discurso da fé, transformando o que seria uma forma de vida e de busca da verdade humana, em um discurso de ódio. Toma-se, por fé, o fanatismo e percebe-se a ciência como uma espécie de razão fechada em si mesma, que rejeita tudo o que não entra em sua lógica. Assim, antes de qualquer consideração, é preciso se perguntar de que fé ou de que razão essa pessoa ou esse grupo está falando?”.
Nesse contexto, Pe. Anderson falou também sobre os caminhos possíveis para se estabelecer um equilíbrio entre a fé e a razão. “De uma parte, uma fé autêntica não só supõe a razão de modo inerente, para não dizer intrínseco, como também se deixa questionar por ela e até vibra com ela em suas descobertas, às vezes, as mais desconcertantes. De outra parte, uma ciência aberta caminha inquieta na direção do conhecimento, sedimentando um percurso sólido, sereno e humilde. Enfim, creio que, por esses caminhos, se pode estabelecer uma concepção equilibrada da fé e da razão”.
Principais desafios
Para o Pe. Anderson Pedroso, “o desafio atual parece ser o de lidar com a ciência contemporânea de matriz tecnológica, num diálogo sério e cheio de descobertas mútuas, mas também cheio de perigos: livre das amarras mítico-religiosas, a ciência hoje pode estar à mercê das lógicas de mercado. Neste mundo conectado, onde tudo parece confluir e se confundir, o discernimento é crucial tanto para a ciência quanto para a fé”.
A falta de investimentos em desenvolvimento e pesquisa científica nacional também é um dos principais desafios que o Brasil precisará encarar, se não quiser ficar para trás, adverte Marcelo Gleiser. “Infelizmente, o Brasil continua, essencialmente, com uma mentalidade colonial, uma visão de país cuja economia é baseada na agropecuária, na extração de minerais e não na criação de tecnologias de ponta. E isso é extremamente grave. Países como Índia, China e Rússia estão em ascensão econômica, justamente, porque entenderam a importância de investir em ciência e tecnologia. Dessa forma, vamos ficar para trás e dependentes, cada vez mais, desses países e dos tradicionais, como Japão, Alemanha, Estados Unidos, Coreia do Sul etc., ‘trocando’ porco e soja por celulares, computadores e carros”.
Independentemente das convicções de cada um, os entrevistados desta edição nos mostraram que esses dois mundos podem e devem conversar. “Todos sabemos que, dialogando, podemos criar afinidades, estabelecer critérios e encontrar possibilidades novas. Isso resulta em sair da arbitrariedade que um método sozinho, muitas vezes, se impõe. A presença de outros métodos nos faz mais livres e criativos. Enfim, precisamos ir além, mas juntos. Desprezar ou eliminar o saber do outro é um erro estratégico grave”, ponderou Pe. Anderson.
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