Um tesouro ajuda a recontar o período das missões, nos séculos 17 e 18. Trata-se de um manuscrito organizado pelo primeiro astrônomo sul-americano, o padre argentino Buenaventura Suárez. Publicado entre 1730 e 1740, em espanhol e latim, o documento traz as coordenadas geográficas (tábua de latitude e longitude) das 30 reduções da Província Jesuítica do Paraguai, determinando a distância de cada uma. Já conhecido, o estudo também é citado em outras obras. Esse registro, no entanto, é inédito, pois não consta nem no Lunário de um século, livro de Suárez, publicado em 1738-1739.
Também um almanaque, o manuscrito reúne assuntos variados, como história dos reinos da China e do Japão, o trabalho de evangelização nesses locais, informações sobre Espanha e Portugal, além de curiosidades culturais. Inclui ainda cópia do livro Theologia tripartita universa complectens nunc Bibliothecam perfectam viri ecclesiastici, ordine sequenti, do famoso teólogo jesuíta Richardi Arsdekin, de 1696.
“Uma obra como essa abre as portas da história”, destaca o professor da Escola de Humanidades da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) irmão Édison Hüttner, que coordena o Projeto de Arte-Sacra Jesuítico-Guarani. Ele foi procurado por Andréa Sinnemann, sobrinha de Liane Janke, de Panambi (cidade a 373 km de Porto Alegre/RS), que possui o livro. Apesar de algumas páginas terem se perdido e de não haver título, deduz que se trata de um lunário pelo tipo de caligrafia e conteúdo. “Com várias temáticas, era destinado ao ensino da cultura geral dos jesuítas e índios”, afirma.
Como os nativos eram alfabetizados pelos padres e aprendiam técnicas de caligrafia e de confecção de livros de forma artesanal, devem ter ajudado a escrever e compor o material, aponta Hüttner. A data da obra foi estimada, levando em conta que faz a cronologia dos papas. O último mencionado foi Clemente XII, pontífice entre 1730 e 1740.
Em 2001, Hüttner esteve nos Arquivos dos Jesuítas, em Roma, e no Secreto do Vaticano, ambos na Itália, onde teve acesso a livros da época das reduções. No local, adquiriu La librería grande, com estudo das publicações feitas a partir de 1705, que serviu de base para a análise atual.
Esculturas ganham novo significado
A cidade de Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul, guarda relíquias mais antigas que o estado, fundado em 1737. Um sino e três imagens de santos esquecidos pelo tempo ganham um novo significado. Uma delas é a escultura de São Nicolau, com 95 centímetros de altura e 38 cm de largura. Os materiais foram garimpados pelo professor irmão Édison Hüttner.
A estátua, feita em madeira, deve ter pertencido à Redução de São Nicolau. Estava no ateliê do Colégio Marista Santa Maria. Sabendo das pesquisas de Hüttner, irmão Roque Salet o procurou para que a identificasse. O pesquisador comprovou que integra o conjunto de obras das missões. Logo lhe chamou a atenção o prego da base, um cravo missioneiro, idêntico aos encontrados na Redução de São João Batista. As técnicas de encaixe dos braços e os sapatos também são comuns no período, assim como as características dos olhos. A arte em policromia se repete. Apesar de quase apagadas pelo tempo, se notam as cores na escultura e inclusive uma cobertura com pó de ouro. Segundo Hüttner, São Nicolau foi produzido pelo jesuíta José Brasanelli, escultor na Redução de São Borja de 1696 a 1706, com a ajuda dos indígenas. Os guaranis, que utilizavam a cerâmica primitiva, passaram a adotar a nova técnica a partir da chegada dos espanhóis.
Atacada por cupins, a peça está rachada. Faltam as duas mãos, encaixadas no restante da peça, e a Bíblia, presente em outras imagens do santo. Devem ter se perdido com o passar dos séculos.
Tomografia computadorizada feita no Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul mostrou que é maciça. “A tecnologia trouxe uma nova perspectiva para a arte missioneira antiga”, afirma o pesquisador, que introduziu essa ferramenta nos estudos. As imagens mostraram a espessura da escultura (20 cm) e a profundidade da rachadura (55 cm). Apareceram ainda pregos na cabeça, colocados provavelmente por vândalos.
Na Igreja Matriz de São Nicolau, existem três esculturas da redução homônima: Santo Antônio, Santo Izidro e Senhor dos Passos. Havia outra de São Nicolau, furtada na década de 1960. Hüttner promoveu uma campanha para tentar localizá-la. Até o momento, não houve nenhuma informação. “Provavelmente a roubada foi parar em Santa Maria”, acredita ele.
Objeto raro
O coordenador do Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do curso de História da PUC-RS, Klaus Hilbert, considera a estátua muito bem elaborada e impressionante. “Trata-se de um objeto raro, pois São Nicolau não é representado com frequência, especialmente naquele contexto”, afirma o professor, que supervisiona o estágio pós-doutoral de Hüttner.
Sino de 1684
Localizado na Catedral de Santa Maria, o sino data de 1684 e pertencia à redução de Santa Maria La Maior, na Argentina. O desenho de uma cruz é o mesmo identificado em dois sinos encontrados pelo irmão marista em Caçapava do Sul, de 1715 e 1732, que ainda badalam. Neste último, consta ainda o nome do indígena que participou da sua construção. Segundo Hüttner, os objetos provavelmente foram retirados de seus locais de origem porque imaginavam que teriam ouro na sua composição. O Laboratório de Microscopia e Microanálises da PUCRS comprovou que são de bronze.
Exposição
Neste mês de novembro, moradores do Rio Grande do Sul e a comunidade estudantil podem conferir uma exposição que mostra o resgate da história das Reduções Jesuíticas, nos séculos 17 e 18. O destaque será a de São Nicolau, o Papai Noel missioneiro. “No mapa da arte sacra nacional, é como se achassem uma obra de Aleijadinho em Ouro Preto”, destaca o irmão Hüttner.
A exposição está exposta no térreo da Biblioteca Central Ir. José Otão. Visitantes podem se cadastrar na recepção. O horário de funcionamento é de segunda a sexta, das 7h35 às 22h50, e aos sábados, das 7h35 às 17h30.
Fonte: PUC-RS (Porto Alegre/RS)