O novo livro do Pe. Antonio Spadaro, Pietro Fabro. Servitore della consolazione (Ed. Ancora, 144 páginas), aborda a vida do jesuíta Pedro Fabro, primeiro companheiro de Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.
A obra fala também sobre como a experiência de Pedro Fabro deve ser melhor compreendida e estudada para se entender o estilo e o modo de governo do papa Francisco. Abaixo um trecho do livro. O Artigo foi publicado no jornal Avvenire, no dia 14 de dezembro, e a tradução é de Moisés Sbardelotto.
A minha cópia do diário espiritual de Pedro Fabro, chamado de Confissões ou Memorial, é um livro amarelado e de capa já desgastada, publicado em 1980. Eu não me lembro exatamente há quantos anos eu trago esse livro comigo, mas é há muito tempo. Eu o li ao longo dos anos de formação como jesuíta e o terminei recentemente. Fabro é um dos jesuítas mais conhecidos.
Todos conhecem Francisco Xavier, o segundo companheiro de Inácio de Loyola, mas poucos conhecem Pedro, savoiano, que, ao contrário, foi o primeiro. Talvez por isso ele me fascinou: o fato de ter sido o primeiro e de ter ficado na sombra. Sem Pedro, a Companhia de Jesus não existiria. O que me atraiu mais foi a sua experiência de amizade profunda com Inácio, que à época foi definido pelo teólogo espanhol rigorista Pedro Ortiz como “um extravagante espanhol que fomentava a desordem de forma inquietante”.
Fabro escreveu no seu Memorial: “Vivemos sempre juntos, compartilhando o quarto, o refeitório, a bolsa; e depois ele havia sido meu mestre de vida espiritual, dando-me a possibilidade de ascender ao conhecimento da vontade divina e da minha própria. Foi assim que nos tornamos uma só coisa nos desejos, na vontade e no firme propósito de escolher a vida que agora todos nós levamos, aqueles que fazemos ou faremos parte desta Companhia, da qual eu não sou digno”. Eu imaginava esses dois homens: estudantes da Universidade de Paris que compartilhavam o quarto de aluguel; um basco, um savoiano.
A sua profunda amizade, que nasceu enquanto Pedro, com pouco mais de 20 anos, ajudava Inácio, com quase 40 anos, a entender Aristóteles e os filósofos escolásticos, é o primeiríssimo início daquela que seria a Companhia de Jesus (…).
Fabro viveu o clima fluido e turbulento da primeira metade do século XVI parisiense e por isso é portador de uma sensibilidade moderna. Ele encarnou uma abertura mental e espiritual com relação aos desafios da época, sobretudo a Reforma Protestante. Se algumas das suas regras ecumênicas tivessem sido acolhidas e postas em práticas no seu tempo, talvez a história religiosa da Europa teria sido diferente. Ele não era um sonhador, mas sim um místico de profunda doçura.
A experiência mais incisiva dos seus anos de formação foi representada pelo encontro com o pensamento da tradição renano-flamenga, ocorrido através da frequentação na Cartuxa de Vauvert. Mas lendo o seu “Memorial”, um diário interior, justamente, entende-se que a sua mística tem a ver com a vida cotidiana, gasta-se nos detalhes, aplica-se aos sentimentos que acompanham os momentos da vida: é plena familiaridade com Deus.
Fabro revela-se mestre tanto no empenho e coenvolvimento exterior, quanto no “discernimento dos espíritos”: não só como grande psicólogo, mas também como autêntico buscador da vontade de Deus (…). A vida interior, para ele, é “sentir e saborear as coisas internamente”, como escreve Inácio nos seus Exercícios Espirituais. Na sua breve vida, Pedro saboreou a existência, sentiu o doce e o amargo, provou “consolação” e “desolação”, mas viveu tudo com a alma. E todo o seu mundo era animado, vívido de “moções espirituais”.
Outro motivo de fascínio: o fato de ser peregrino incansável, caminhante nato. Aproveitava longas viagens, geralmente feitas a pé, para disseminá-las de oração e de atividades sacerdotais, mostrando, assim, também para nós hoje, como se pode conjugar uma vida ativa extraordinária com uma profunda união com Deus. Esse Fabro, doce místico peregrino, incansável caminhante da grande familiaridade com Deus, peculiar coincidentia oppositorum, me impressionava porque eu não conseguia aferrá-lo totalmente. E ainda não consigo hoje.
Portanto, durante a minha entrevista de fim de agosto de 2013, quando perguntei ao papa Francisco qual era o seu jesuíta preferido, tive um choque quando ouvi o nome de Pedro Fabro. Descobri, assim, que o então padre Jorge Mario Bergoglio, provincial dos jesuítas da Argentina, tinha até encomendado uma edição do “Memorial” a dois jesuítas especialistas, Miguel A. Fiorito e Jaime H. Amadeo. Eu soube que a sua edição preferida é a editada por Michel de Certeau. Dentre outras coisas, o papa cita um pensamento de Fabro na sua primeira exortação apostólica: “O tempo é o mensageiro de Deus” (Evangelii gaudium, n. 171).
Por que ao papa agrada particularmente o primeiro companheiro de Inácio? Ele me respondeu substancialmente dando uma lista de razões: “O diálogo com todos, mesmo os mais afastados e os adversários; a piedade simples, talvez uma certa ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento discernimento interior, o fato de ser um homem de grandes e fortes decisões e ao mesmo tempo capaz de ser assim doce, doce…”. Nas suas palavras, eu relia a minha experiência de Fabro, que permaneceu então substancialmente incompleta, interrompida também na leitura do seu diário. E, ao mesmo tempo, eu entendia o quanto Fabro foi e ainda é realmente um modelo de vida para ele.
No dia 14 de junho de 2013, no seu discurso para a redação da La Civiltà Cattolica, o papa Francisco tinha dado aos redatores, como consigna, três palavras-chave: diálogo, discernimento, fronteira. São as palavras-chave da vida de Pedro Fabro, unidas a uma infinita doçura de trato que converteu muitos, mais do que muitas palavras. Michel de Certeau define Fabro simplesmente como o “padre reformado”, para o qual a experiência interior, a expressão dogmática e a reforma estrutural são intimamente indissociáveis. Parece que posso entender, portanto, que o papa Francisco se inspira justamente nesse tipo de reforma. Fabro está convicto de que é no nível da complexidade dos sentimentos e dos afetos espirituais – em que o homem aprende a dialogar com Deus e a sentir o seu mistério – que se tomam as grandes decisões, mesmo aquelas “estruturais”.
Para Fabro, Deus age e atua no coração do homem, transformando-o. A confiança na ação de Deus no fundo do ser humano o distingue de Lutero, atento demais ao seu estado de pecador para crer nessa transformação interior. Fabro vê florescer a presença de Deus em toda a parte; Lutero sempre espera pela sua vinda, que, única, pode salvar da condenação. Mas transformação interior não significa espiritualismo. Longe de Fabro, como de Bergoglio, aquela que o próprio papa definiu como “a constante tentação das tendências pseudomísticas da existência cristã”. Longe de ambos “aquela espécie de cristianismo espiritual que estava perdendo o contato com a cotidianidade e a vida concreta”.
Para Fabro, assim como para Bergoglio, vale o que escreveu Inácio de Loyola: Deus se comunica com cada um de nós com “moções” interiores, “move e atrai a vontade”. Esse espaço de encontro e de atração, rico em afetos, não se contrapõe, de fato, à razão nem à gestão da vida e aos seus projetos práticos, mas, ao contrário, os anima: “O coração conjuga a ideia com a realidade”, escreveu tempo atrás o então cardeal Bergoglio. A experiência de Fabro, portanto, deve ser melhor compreendida e estudada para se entender o estilo e o modo de governo do papa Francisco.
Fonte: www.ihu.unisinos.br/ Foto: Reprodução