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O cuidado como um legado espiritual inaciano no pós-pandemia

Pe. José Ivo Follmann, SJ
Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil

A palavra cuidado é muito importante no vocabulário interno da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que o “cuidado com as pessoas” e o “cuidado apostólico” fazem parte da espiritualidade inaciana e do modo de ser jesuíta. Também o “Cuidado com a Casa Comum”, que se consagrou com a Carta Encíclica Laudato Sí, em 2015. Nela, o Papa Francisco reflete uma longa história de tomada de consciência interna à Companhia de Jesus, ao longo das últimas Congregações Gerais, na construção de relações justas com Deus, com os outros na sociedade e com os dons da criação, ou seja, no cuidado da vida em todas as suas dimensões e expressões.

Foi o que me veio à mente, de imediato, frente à pergunta feita pela jornalista sobre qual o “legado da vida e espiritualidade de Santo Inácio” em vista de um compromisso nosso na “nova realidade pós-pandemia”. Mas, talvez, o início da resposta deva ser: “ver Deus em tudo”. Também é uma expressão de síntese vigorosa na espiritualidade inaciana. Além de síntese vigorosa, é uma expressão de força indescritível. É profundamente mobilizador. Muitas vezes, deixo-me arrebatar pela riqueza espiritual tremenda que está assim expressa. 

A humanidade, hoje, tem a oportunidade de entregar-se, como um todo, a um processo de transformação em suas ‘normalidades’. A ‘sacudida’ em Inácio de Loyola, dentro do seu processo de conversão,  foi radical e gerou um projeto pessoal e coletivo totalmente novo. Cada um e cada uma de nós tem a alegria de participar e de estar envolvido e envolvida, de alguma forma, no projeto coletivo que resultou da conversão de Inácio de Loyola. Nós comungamos, por meio desse projeto, na mesma Missão de Jesus Cristo.

A ‘sacudida’ da humanidade, no atual momento de pandemia, está sendo intensa e, por todos os recantos da Terra, despontam sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas no nível pessoal e no coletivo. O seu alcance e sua consistência ainda não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos ‘afundados’ na pandemia. Ainda não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de pós-pandemia. Ainda temos dificuldades para desenhar, em nossas mentes e em nossos corações, essa realidade futura. Algumas ideias são repetidas. Vou citar duas: 1) A pandemia veio para inaugurar, definitivamente, aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado “mudança de época”. 2) Com a pandemia, as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça, a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar, mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra. (Palestra, FAJE, junho 2020) 

Como já sinalizei, Inácio de Loyola foi um radical. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas com base em uma lógica totalmente outra. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento completamente novo.

A pandemia também vem mexendo muito conosco. Mexeu com nossas lógicas. Mexeu com as estruturas de base e com as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da Terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente, a humanidade tornou-se surda a elas.

Em uma leitura que fiz, no início de 2019, de um pequeno livro do teólogo Leonardo Boff (2018), de antes da pandemia, uma passagem me chamou particular atenção:  Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor refere-se a duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, em que Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escreveu: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder”. 

A pandemia me fez compreender, mais profundamente, aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa, efetivamente, contribuir para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida).

As nossas instituições estarão povoadas de protocolos para o exercício do cuidado conosco e com o próximo. O nosso avanço, no entanto, deve apontar para muito além desses protocolos. Que o sonho, ou, o apelo à conversão, que o Cardeal Tolentino manifestou, ao falar em nova época “espiritualmente nova”, se faça um efetivo processo de transformação em nós! 

Eu torço para que saltemos muito além dos protocolos, que nos serão solicitados, e que o processo de conversão se faça realidade na disposição de nossas mentes e de nossos corações, para: – Reconhecer o outro em sua dignidade, mediante gestos concretos de fraternidade, acolhimento e denúncia de toda ordem de preconceitos e discriminações; – Construir sociedades geradoras de vida, sem as escandalosas e crescentes injustiças sociais e desigualdades; – Cultivar a vida em todas as suas expressões e dons da criação, em geral.

Em suma, que seja um cuidado regenerador no amor a toda a vida que pulsa em nossa Casa Comum. Um cuidado, que, além das dimensões mencionadas, se expresse nos diversos níveis de nossa vida e ação, e, de modo particular: – Em nosso jeito de produzir conhecimento; – Em nossas incidências diretas e indiretas nos processos de decisão e condução das políticas orientadoras da vida em sociedade; – Em nossos hábitos e práticas na vida do dia a dia.

Colocados no horizonte da Ecologia Integral e do cuidado da Casa Comum de que nos fala a Laudato Sí (2015), todos os cuidados aqui mencionados são dimensões da prática da justiça socioambiental. A realidade pós-pandemia deverá encontrar-nos profundamente revigorados(as) na disposição de cultivadores (as) da justiça socioambiental. Talvez, deva ser um dos traços fundamentais da espiritualidade de que necessitamos.

Nesse sentido, o Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província (Marco PJSA), em sua nova edição (2020), conclui com fortes apelos para que nos empenhemos em propor que a economia esteja a serviço das necessidades básicas de todos os seres humanos e de sua qualidade de vida, bem como conserve os dons da criação e não continue comprometendo mortalmente a natureza. Que, em nossas vidas, em nossas instituições e no mundo econômico, político e social, sejamos protagonistas do cuidado com a vida, uma vida digna para todos e todas.

É importante que, junto com toda a humanidade, tenhamos aprendido a lição da pandemia. Um aprendizado de que não podemos voltar a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira.

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