Páscoa e Restauração

[…] Uma vez quando eu era menino, abri a porta de noite,

a horta estava branca de luar

e acreditei sem nenhum sofrimento.

Louvado sejas!

(Adélia Prado)

A Celebração deste Bicentenário de Restauração da Companhia de Jesus faz memória daquela manhã do dia 7 de Agosto de 1814, tão esperada, quando, após a Eucaristia, o Papa Pio VII, junto ao Altar de Santo Inácio, em Roma, solicitou ao Monsenhor Cristaldi a leitura da Bula Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, declarando restaurada a Companhia de Jesus em todo o mundo. Na ocasião, estavam presentes todos os cardeais da cidade, bem como cerca de cem jesuítas, sobreviventes à época da supressão, e o Rei Carlos IV, da Espanha.

Passados duzentos anos, porém, muito mais pessoas reúnem-se para fazer mais que uma recordação da vida ou uma comemoração. Somos muitos os que desejamos profundamente algo a mais. Desejamos debruçar-nos sobre o Mistério do Cristo e sobre o sentido inaciano de fazer esta memória agradecida: com preâmbulo e composição de lugar; iluminados pela Ressurreição do Senhor; com pedido de graça e contemplação e, até mesmo, com a aplicação dos sentidos.

Porque, na verdade, queremos mais que compreender, ansiamos por vivenciar e experimentar fazer essa travessia dos “Dois períodos de uma mesma história num mesmo Espírito”, para celebrarmos juntos esta Páscoa, em busca do homem novo, com um grande hino de louvor, que contempla as maravilhas do Senhor nas múltiplas e repetidas manifestações de Sua bondade ao longo da nossa história e, especialmente, na história da Companhia de Jesus.

Nesse sentido, somos convidados a recordar, em nossa vida mesma e com a Igreja e a Companhia, os inúmeros benefícios recebidos pela criação, redenção e dons particulares, ponderando, com muito afeto, quanto Deus nosso Senhor tem feito por cada um de nós e quanto nos tem dado daquilo que tem. O que nos levará também a refletir em nós mesmos, com muita razão e justiça, sobre o que devemos oferecer a Ele, que age e trabalha em nós e em todas as coisas, reconhecendo como todos os bens e dons descem do alto (cf. EE 234-236).

E esse exercício fará o nosso coração arder, como ardia o coração dos discípulos, na presença do Ressuscitado, quando o reconheceram no partir do pão. De igual modo, o mesmo Espírito aquecera o coração de Inácio e dos primeiros companheiros e lhes arrancava lágrimas, quando à volta do caminho, tantas vezes, também reconheceram o Senhor e o quiseram servir, em espírito de pobreza e castidade, colocando-se à disposição do Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra. Homens instruídos e disponíveis para estar naqueles lugares físicos e espirituais aonde outros não chegam ou têm dificuldade de ir. Homens dispostos para a defesa e a propagação da fé. A Companhia de Jesus nunca esteve isenta de conflitos e tensões, enquanto buscava, e ainda hoje procura, descobrir novos horizontes de missão, esforçando-se por alcançar novas fronteiras sociais, culturais e religiosas, não raro em lugares desestabilizadores da tranquilidade e da segurança.

Manter unidos o serviço da fé e a promoção da justiça, numa profunda contemplação dos mistérios da vida de Cristo e da nossa própria realidade, nos faz experimentar, dia a dia, o desafio da cruz, assim como se deu com a Companhia nos anos de sua supressão, dado que a Encarnação do Senhor e o Mistério Pascal atam duas pontas da nossa vida e ministério. O caminho de Cristo é o nosso caminho. Nele, nem sempre poderemos evitar a experiência do abandono e de uma Divindade que parece esconder-se.

Peçamos, então, a graça de carregarmos, juntos, nossas cruzes, uma vez que Deus une pessoas tão diferentes e frágeis sob a mesma bandeira e restaura nossas rupturas internas, unificando-nos como pessoas, como comunidades, como corpo apostólico a serviço da Missão. Por isso, é importante, também para nós, ter uma memória da bondade do Senhor.

A memória torna-se uma força de esperança. Ela nos diz que Deus existe, que Ele é bom e que é eterna a Sua misericórdia! Desse modo, a memória abre – mesmo na escuridão de um dia, de um período – a estrada para o futuro. Ela é luz que rompe as trevas e nos faz reviver o bem, o amor e a misericórdia do Pai. É ela que nos faz acreditar, sem nenhum sofrimento, e chegar a dizer: “Louvado sejas!”

 

André Luís de Araújo, sj

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