Quem são as mulheres negras brasileiras? Onde elas estão, para onde vão? O livro “Outras mulheres: mulheres negras brasileiras ao final da primeira década do século XXI” (Editora PUC-Rio) elucida essas questões da maneira mais autêntica e fiel possível: dando voz a essas mulheres. Organizada pela professora do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, Denise Pini Rosalem da Fonseca e pela professora de Literatura Norte-Americana da UFF (hoje aposentada), Tereza Marques de Oliveira Lima, a obra nos apresenta seis mulheres negras que, por meio de depoimentos e artigos, contam suas histórias e o processo de autorreconhecimento pelo qual passaram. São mulheres que, conscientes de sua condição no mundo, readaptam-se às relações de poder e superam as barreiras do campo acadêmico e do mercado de trabalho.
A professora Denise Pini (foto, primeira à esquerda), em entrevista à Editora PUC-Rio, explica o que levou à organização desse livro, expõe sua visão sobre as ações afirmativas em universidades e fala de seus novos projetos.
O que destaca as mulheres negras que compuseram esse livro das tantas outras no Brasil?
Denise: “Não basta ser mulher, há que se tornar mulher”, frase de Simone de Beauvoir, explica bem isso. Ser mulher no mundo é muito mais do que ser portadora de uma certa biologia; é uma construção cultural, encharcada de relações de poder com o masculino. O mesmo vale para a questão racial: você ter nascido com um corpo pigmentado não te faz uma pessoa consciente da pertença social: não basta ser negro, há que se tornar negro. A diferença das seis autoras presentes no livro, todas mulheres negras com distintos matizes de pele, de distintas regiões brasileiras, distintas situações socioeconômicas, está no processo reflexivo pelo qual passaram. São mulheres que conheceram o que significa, em termos de relação de poder, ser mulher, ser indivíduo da população negra e ser mulher negra na sociedade brasileira. Trata-se um sujeito político novo, uma identidade nova, consciente “de si e para si”.
A introdução ao livro é feita a partir de depoimentos das próprias autoras. Qual foi a sua intenção em explicitar esses discursos? Por que essa escolha ao montar o texto?
Denise: Analisando politicamente, [a mulher negra] é um sujeito político que não precisa de tradutores. Essas mulheres têm uma reflexão muito densa de si mesmas, profundamente construídas, são letradas, articuladas – podem falar por si próprias. Eu não me atrevo a falar sobre a mulher negra, pois a mulher negra fala sobre si mesma, não precisa de um mediador. Em respeito a esses sujeitos de pesquisa (pois não são objetos, são sujeitos) e ao próprio leitor (em cuja inteligência confiamos), é possível colocar em contato direto aquele que anuncia e aquele que lê. É uma dinâmica com riqueza sem precedente. Além disso, eu, como escritora, faço um gênero ficcional chamado metaficção historiográfica, que consiste exatamente em recortar discursos e montar uma narrativa a partir desse clipping. A história que eu conto em meu capítulo é a narrativa sobre essas seis mulheres, enquanto a narrativa delas é sobre a mulher negra.
Há um destaque atribuído ao Ensino Superior como influência decisiva na vida dessas mulheres. Por que esse destaque?
Denise: Percebemos que o sujeito político, seja no campo das relações de gênero, seja no das relações raciais, se constrói a partir da aquisição de um determinado letramento, uma alfabetização sobre sua condição. Esse processo de tomada de consciência implica uma postura de readaptação às relações de poder já existentes. Após 10 anos de análise empírica desse fenômeno, observamos que o campus acadêmico é propício a uma renegociação em relações de poder.
E as ações afirmativas? Qual é sua posição?
Denise: Sou politicamente a favor. Acho que há uma dívida da sociedade – não da população branca, mas da sociedade – com a população negra brasileira. A entrada na universidade é, historicamente, um rito de passagem para sacramentar as diferenças sociais, econômicas e políticas da população brasileira. É um espaço de poder; era preciso criar condições para a população pobre, negra, entrar nesse espaço. Tenho total convicção de que a cota [em universidades] deve ser uma medida temporária e que é imprescindível uma recriação da educação básica pública brasileira. Mas há uma defasagem muito grande, de três, quatro gerações, que estão perdidas e para as quais nós não podemos falar “Que pena, meu filho, você nasceu na época errada. Você não vai ter chance”. A universidade não pode ser uma “festa só para poucos”.
De onde surgiu a decisão de organizar esse livro?
Denise: Durante 10 anos, pesquisamos onde está a mulher negra, e onde ela não está. Onde ela está começando a chegar? O que há de política pública que respalde essa chegada? Com que apoio ela vem? Porque ela vem perdedora; as portas estão fechadas para ela. Quando essas mulheres entram na universidade, estão em absoluta posição de desvantagem! Permanece o racismo institucional, permanecem as estruturas de desqualificação… Onde estão as lésbicas negras? Essas são as degredadas das degredadas; têm todos os pecados. Não é à toa que elas sofrem, estão depressivas e se escondem. É justo que elas vivam dessa forma? Elas são assim: mulheres, negras e homossexuais. É a condição delas no mundo e não precisam se adequar a um padrão dito correto, estreito, angustiante. O que nos leva a organizar esse livro é justamente o desejo de falar e pensar sobre isso – e há muito mais a ser feito.
E qual a posição da PUC-Rio nessa iniciativa?
Denise: Nós somos pioneiros e únicos. Academicamente, só o Programa de Pós-Graduação de Serviço Social da PUC-Rio trata desses temas. A instituição ajuda ao permitir e respaldar o professor “louco” que empreende essa aventura. A PUC-Rio foi absolutamente receptiva, acolhedora, aberta ao diálogo. Ela também aproveita essa nova massa de sujeitos, que adentram nosso coletivo e diversificam o ambiente, o campus, e a toma como oportunidade para se repensar e pautar novos temas.
Recentemente, você esteve nos Estados Unidos para apresentar o livro. Como foi essa visita?
Denise: Existem, nos EUA, algumas autoras que são muito importantes para o movimento de afirmação da identidade da mulher negra; eu destaco a professora Gloria Watkins, conhecida no campo da militância da mulher negra como bell hooks [propositalmente em minúscula por preferência da professora]. Começamos a conversar com ela sobre a possibilidade de tradução e publicação do livro nos Estados Unidos, mas o processo é complicado; de qualquer forma, se não for publicado em impresso, com certeza será veiculado como e-book em inglês.
Quais são seus próximos projetos?
Denise: Temos o Programa de Promoção e Preservação da Saúde da Mama, em parceria com a Escola Médica da PUC-Rio. Há um ano já em funcionamento, é um projeto na Comunidade Vila Canoa, onde faremos, durante 4 anos, o cadastramento de 500 mulheres de 50 a 70 anos e oferecemos mamografia continuada. Para aquelas em que foi diagnosticado o câncer, daremos todo o processo de tratamento. Acabamos de apresentar esse trabalho à FAPERJ e esperamos financiamento para consolidarmos um grupo de pesquisa.