Como a vida e a espiritualidade de Santo Inácio podem ajudar no trabalho educativo em momentos de crise, no presente e no futuro? Essa pergunta, que me foi apresentada, remete a uma temática demasiado ampla para ser esgotada dentro dos limites previstos para um pequeno artigo como este. Diante disso, me proponho a apresentar alguns elementos, a fim de que os leitores possam refletir e construir as suas próprias respostas.
Uma espiritualidade cristocêntrica
Espiritualidade é um vocábulo de significado amplo, o nosso recorte limita-se à espiritualidade enquanto uma propensão humana a buscar significado para a vida por meio de experiências igualmente humanas, mas que transcendem o tangível, à procura de um sentido de conexão com algo maior que a si próprio, mais especificamente, nos restringimos à espiritualidade adjetivada como cristã, católica e inaciana.
Cristã faz referência, obviamente, a Jesus Cristo, católica aponta para a universalidade e inaciana remete a Inácio de Loyola, que viveu no século XVI na Espanha. Até por volta dos 26 anos de idade, ele não tinha nada de incomum se comparado a outros jovens de sua época¹, contudo, em um determinado momento da vida, teve uma forte experiência com Deus. Uma experiência tão intensa que mudou radicalmente os rumos da sua vida. Não apenas a dele, mas também a de outros que atraiu; alguns desses deixaram tudo, formando um grupo em torno de Inácio de Loyola. Eles quiseram ser chamados de inacianos, porém Inácio rechaçou com veemência essa ideia para evidenciar que o centro não era a sua pessoa, mas todos, pois estavam buscando seguir a Jesus Cristo, o Filho de Deus humanizado. Eis porque foram, então, denominados de companheiros de Jesus.
Toda espiritualidade cristã visa colocar a pessoa em comunhão com Deus. O que distingue a espiritualidade inaciana são as regras do discernimento. Essa é a marca registrada dos Exercícios Espirituais, um modo de oração em que a pessoa vai discernindo as consolações e as desolações, no intuito de ir conhecendo o que Deus quer para a vida daquele que se propõe a fazer tal experiência.
Portanto, ao se falar de espiritualidade inaciana, há que se ter presente que se trata, antes de tudo, de uma espiritualidade cristocêntrica. Nos Exercícios Espirituais, o centro é Jesus Cristo, mais precisamente, um Jesus que vem ao encontro do ser humano.
Uma espiritualidade fundamentada nos valores cristãos
A espiritualidade inaciana, além de cristã, é crística². Cristã porque provém do Cristo e se destina, em primeiro lugar, aos cristãos. Crístico também se refere a Jesus Cristo, mas não se restringe aos que pertencem a alguma Igreja cristã. Crístico se refere, antes de tudo, aos valores que caracterizam a fé cristã, portanto é mais abrangente e mais universal.
Nas obras e grupos de seguidores da espiritualidade inaciana, muito se fala de Magis, vocábulo latino cuja tradução é ‘mais’. O discernimento espiritual³ é bem-vindo neste ponto, pois, no ser humano, há uma imperiosa tendência de se confundir Magis com megalomania. Indo por esse caminho, não se está sendo verdadeiramente inaciano, pois tampouco se está sendo cristão. Jesus Cristo, o Filho de Deus, feito ser humano, se pautou por uma doação total e irrestrita de si mesmo, “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45); “Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo”(Fl,2,6-11).
Uma espiritualidade a serviço de uma educação “em saída”
“Uma Igreja em saída”, esse imperativo remonta ao Concílio Vaticano II, sendo atualmente enfatizado pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium. Esse convite de Francisco é a marca predominante do seu pontificado, que deseja ver renascer na Igreja uma nova experiência de fé cristã missionária, fundamentada no Evangelho, de modo que a mensagem da salvação chegue, realmente, a todos, sem exclusão. Esse chamado é destinado a toda a Igreja, portanto, obviamente, também à Companhia de Jesus e a todos os membros das mais diversas instituições e atividades, de algum modo, ligadas à espiritualidade de Inácio de Loyola.
A história da Companhia de Jesus está assinalada, desde os seus primórdios, pelo serviço da educação. Segundo o Pe. Geral Pedro Arrupe: “A educação manifesta as qualidades e desperta as iniciativas, tornando o homem consciente de sua própria dignidade e de seus próprios deveres e direitos…Eduquemos o marginalizado e o pobre e eles serão os primeiros impulsionadores da própria promoção”⁴. Para tanto, é necessário que a educação seja estabelecida e, efetivamente, desfrutada como um direito universal, porque é um direito humano básico e fundamental no qual todos os demais se baseiam.
No Brasil, a Companhia de Jesus, ao longo de sua história, sempre esteve à frente de instituições educativas em todos os níveis. As perguntas são: como esse trabalho está sendo, e/ou deve vir a ser, desempenhado no momento atual? O que significa educar nos dias e na realidade hodierna? Como a educação oferecida nas instituições confiadas à Companhia de Jesus tem enfrentado a questão da concentração da riqueza e da consequente desigualdade social tão avassaladora no nosso país?
O Papa Francisco está na liderança da realização de um encontro para reconstruir o Pacto Educativo Global, previsto para o dia 15 de outubro de 2020. Como as instituições educativas da Companhia de Jesus estão participando do processo de construção desse tão importante pacto educativo?
No Brasil, atualmente, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) é o principal mecanismo de financiamento da educação básica e sua vigência está prevista para terminar este ano. Isso é muito preocupante, pois as redes estaduais e municipais juntas atendem a mais de 80% dos estudantes da educação básica. As escolas federais, colégios militares, vinculados à universidades, os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets) e o Colégio Pedro II são reconhecidos pela alta qualidade no ensino, mas respondem apenas por 1% das matrículas, o restante está no setor privado. Estamos, pelo menos, acompanhando os trâmites em relação à continuidade, as necessidades de aperfeiçoamento, ou até o perigo da extinção do Fundeb?
À guisa de conclusão
Na condição de cristãos ligados à espiritualidade inaciana não podemos fechar os olhos diante do fato de inúmeras pessoas no mundo e, em particular, no Brasil continuarem excluídas do direito à educação e de outras tantas serem relegadas a uma educação de qualidade muitíssimo deficitária. Mesmo em regiões com mais recursos econômicos, nas quais estão situadas a maior parte das instituições educativas da Companhia de Jesus, a educação em valores e em cidadania é, com frequência, reduzida a tímidos apêndices.
Para a Igreja e, portanto, igualmente, para a Companhia de Jesus, educação e evangelização são dimensões eclesiais que devem estar sempre integradas, pois, embora distintas, são complementares. A partir daí podemos promover a superação de uma ciência fragmentária e da reivindicação de uma educação integral, comprometida com o desenvolvimento harmônico das qualidades do ser humano.
A atitude esperada de toda a Educação Católica é aquela que leva em conta o despertar da consciência do estudante para a beleza da vida e do mundo e isso ocorre quando se sai de si, quando se coloca no lugar e na condição do interlocutor, seja jovem, seja adulto, quando se assume a escuta como lugar de reconhecimento da vida do outro e, em última instância, quando o outro não é considerado distante, mas, um irmão(a) a ser orientado(a).
¹Sobre a vida e obra de Inácio de Loyola, remeto à belíssima biografia romanceada de: PUNCEL, M., Inácio de Loyola, Ed. Loyola, São Paulo: 2008.
²MIRANDA, M. F., Vislumbres de Deus, São Paulo: Paulinas, 2019, p.18: “[…] toda a criação tem uma dimensão crística […] toda criatura alcança sua realização plena e perfeita no próprio Deus. Esse dinamismo é intrínseco a qualquer criatura (Rm 8,19-23), embora somente o ser humano tenha conhecimento dele”.
³PAIVA,R., Discernimento pessoal em família e em comunidade, São Paulo: Loyola, 2004.
⁴ARRUPE, P., Ante un mundo en cambio, Saragoça: Editorial EAPSA, 1972.2