II – Itinerário jesuíta
A minha vocação
Conheci os jesuítas no colégio e não tive nenhuma dúvida sobre a minha vocação à Companhia de Jesus. Nem sequer pensava como vocação ao sacerdócio, mas sim a ser jesuíta. Na verdade, tentando recordar-me, os jesuítas que mais me impressionaram foram os irmãos. Havia muitos irmãos na Província da Venezuela. Em concreto, no colégio, havia irmãos cozinheiros, o que arranjava o ônibus, o motorista… e havia irmãos professores. Na primária, muitos irmãos davam aulas, eram verdadeiros pedagogos. Os irmãos e os magisteriantes eram quem, verdadeiramente, nos acompanhavam, os padres nem víamos.
O meu interesse pela Companhia nasce nesse contexto, muito alimentado também por um olhar atento à situação do país. Pensava que podia fazer algo pelo país e que, para mim, o melhor lugar para o fazer era a Companhia. A minha geração era muito sensível à necessidade de continuar a construir o país. Vários, companheiros de grupos e da Congregação Mariana, tornaram-se médicos, engenheiros, outros foram para a Amazônia. Havia um sentimento de fundo, acreditávamos em um projeto de país, um projeto de sociedade.
Tempo do Concílio
O Concílio teve muita importância para mim, foi, sem dúvida, uma importante notícia. Acompanhamos como se fosse uma novela. A Congregação Mariana era o lugar onde a nossa reflexão vinculava o social com o espiritual e era aí que líamos os documentos que alimentaram a reflexão semanal dos nossos grupos durante os quatro anos que durou. Seguíamos o Concílio passo a passo.
E nesse tempo, houve a eleição do padre Pedro Arrupe, que foi outra lufada de ar fresco. Arrupe é eleito quando, no meu grupo, estávamos tentando decidir se entrávamos na Companhia. No colégio, era histórica a relação com as missões do Japão e Ahmedabad, na Índia. A eleição de um missionário no Japão foi muito simbólica e importante.
“[…] a Igreja venezuelana era uma Igreja muito frágil e, por isso, o Concílio Vaticano II é tão importante para nós”
Já no noviciado, tínhamos o livro dos decretos da 31ª Congregação Geral (CG 31). Líamos e estudávamos esses decretos mais que ao padre Rodriguez3. E chegou a Carta do Rio4, coincidindo com a Conferência de Bispos da América Latina, em Medellín (Colômbia). Aconteceu algo de parecido com o Concílio, pois vivemos muito de perto toda a reflexão e dinâmica. Os documentos preparatórios dessa conferência foram transformados por uma força que vinha das bases, como um grito que se tinha de escutar, pois eram as próprias pessoas que diziam que tínhamos de mudar. Isso foi um grande impulso para a Igreja latino-americana e venezuelana.
Há que se dizer que a Igreja venezuelana era uma Igreja muito frágil e, por isso, o Concílio Vaticano II é tão importante para nós. A Igreja, na Venezuela, foi praticamente exterminada durante o século XIX. É uma sociedade muito mais laica que a mexicana ou a colombiana, com uma religiosidade muito menos expressiva. Além disso, foi atacada e expropriada pelos vários governos. Foi essa a razão que levou os jesuítas à Venezuela, foram chamados para trabalhar no seminário, para formar o clero de uma Igreja pobre e frágil, em que não havia vocações. Esse é o contexto em que se dá o Vaticano II, Rio, Medellín… Era o mesmo que dizer: a Igreja encontrou a sua força nas pessoas, encontrou a sua força na fé do povo e, dessa fé, temos que viver e, dessa fé, vamos poder gerar uma outra Igreja.
Magistério no Centro Gumilla
Nesse tempo, a Companhia de Jesus estava criando, na América Latina, os centros de investigação e ação social (CIAS), fazendo um esforço para que os jesuítas se formassem em Ciências Sociais. Muitos companheiros foram enviados para estudar Economia, Sociologia, Antropologia e começaram a formar-se grupos de investigação e de trabalho. O primeiro desses CIAS, na Venezuela, recebeu o nome de Centro Gumilla, um jesuíta que andou pelo Amazonas5 e que escreveu grande quantidade de obras sobre Antropologia e Botânica. Esse grupo começou quando entrei na Companhia e coube aos noviços ajudar a montar a biblioteca. Eu tinha muita vontade de estudar Ciências Sociais e essa coincidência foi muito motivadora.
Uns anos depois, os provinciais pensaram na hipótese de possíveis destinos de magistério fora dos colégios e tive a sorte de ser enviado como magisteriante para o Centro Gumilla de Barquisimeto. Esse Centro ocupava-se, essencialmente, das cooperativas agrícolas nos bairros desse lugar. Outros companheiros foram para paróquias. A província estava empenhada em oferecer aos jovens possibilidades diferentes das mais tradicionais.
“Na Itália, eu criei facilmente laços com comunidades cristãs. Estes anos foram essenciais para a minha abertura a outras perspectivas de sociedade, de Igreja e de Companhia de Jesus”
Teologia em Roma
Vim para Roma (Itália) fazendo das tripas coração, pois, na Venezuela, não era possível estudar Teologia. Queríamos estudar no Chile ou na América Central, pois, nesse tempo, eram lugares com um forte dinamismo religioso e político. Vendo agora as coisas, agradeço que me tenham obrigado a vir para Roma, pois, de outra forma, teria perdido a oportunidade de viver intensamente com jesuítas de 30 países diferentes. Nessa época, as pessoas e o ambiente estavam muito animados. Na Itália, eu criei facilmente laços com comunidades cristãs. Estes anos foram essenciais para a minha abertura a outras perspectivas de sociedade, de Igreja e de Companhia de Jesus.
Ainda assim, empenhámo-nos para que o 4º ano de Teologia fosse feito na Venezuela e o padre Pedro Arrupe – com a ajuda do padre McGarry – foi muito compreensivo. Após a fundação do Centro Gumilla, iniciou-se um conjunto de comunidades religiosas na Venezuela com a ideia de criar uma Faculdade de Teologia e, nesse momento, pude fazer um quarto ano ad hoc em formato de seminário intensivo.
III – Ciências Políticas
Universidade Central da Venezuela
Durante o último ano de Teologia, também trabalhávamos. Nesse tempo, tinha atividades mais pastorais. Vivíamos em Catia6 – paróquia da Companhia em Caracas (Venezuela) – e trabalhava com outro companheiro em uma paróquia perto de El Valle, enquanto fazíamos os estudos de Teologia. Ao terminar esse ano, iniciei os estudos em Ciências Políticas na Universidade Central da Venezuela. Era a universidade mais importante do país, onde havia professores jesuítas e tínhamos a capelania universitária. Um ambiente muito importante para a Companhia, empenhada em marcar presença não só na Universidade Católica, mas também na Central onde a amplitude da discussão ideológica era maior.
Centro Gumilla
Destinaram-me, então, ao Centro Gumilla, em Caracas, onde comecei a trabalhar na revista SIC ao mesmo tempo em que fazia o doutoramento e dava aulas na universidade. Trabalhei nesse centro a partir de 1977. Quando o padre Ugalde foi nomeado provincial, nomearam-me diretor da revista e dediquei-me a esse trabalho durante 18 anos, até 1996. A revista era o órgão de comunicação do Centro Gumilla, com a missão de difundir o trabalho intelectual e de investigação que o Centro realizava. A revista chama-se SIC – que significa se em latim –, pois tinha nascido no Seminario Interdiocesano de Caracas, muitos anos antes, e só mais tarde foi assumida pelo Centro Gumilla.
Nessa revista, de periodicidade mensal, tentávamos seguir a realidade social e, além disso, investir na formação socioeconômica de estudantes, grupos paroquiais, grupos populares. Tínhamos também uma ligação muito forte com a universidade, onde todos trabalhávamos, dando aulas ou estando envolvidos em algum grupo de investigação. Em Barquisimeto (Venezuela), promovíamos cooperativas de poupança e de crédito nos bairros e cooperativas agrícolas nas zonas rurais. Fazíamos uma reflexão comum muito interessante e, nesses anos, dediquei-me a escrever, ler, discutir e participar em cursos de formação.
³ Autor de um livro clássico utilizado durante séculos na formação dos jesuítas.
4 Meses antes da Conferência de Bispos em Medellín (Colômbia), os Provinciais jesuítas da América Latina, reunidos com o Padre Arrupe, dirigem à Companhia uma carta, chamada “Carta do Rio” (maio 1968), que se tornará chave para o papel e empenho da Companhia na defesa da justiça social na América Latina.
5 O padre Gumilla, missionário jesuíta do século XVII, fundador de várias povoações nos rios Apure, Meta e Orinoco, era, sobretudo, um homem de ação e um observador perspicaz da natureza e antropologia. Morreu em um lugar desconhecido dos Llanos venezuelanos no dia 16 de julho de 1750, depois de 35 anos de trabalho missionário.
6 As Flores de Catia é um bairro popular de Caracas onde a Companhia de Jesus tem o Instituto Técnico de Jesús Obrero, Instituto universitário Fe y Alegria e a Paróquia Jesús Obrero, onde reside a comunidade jesuíta na qual viveu o Pe. Geral.