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IV – Liderança jesuíta

Época como Provincial

Em 1996, calhou-me em sorte ser provincial, quando já se via que as mudanças sociais iam ser fortes e que era preciso fortalecer a identidade da província. Tudo estava pronto para maior abertura às vocações venezuelanas dentro da província, não só as vocações jesuítas, mas também as de tantas pessoas já comprometidas com diversas instituições: a universidade, colégios, Fé e Alegria, paróquias. Era um momento muito interessante, pois já havia um corpo de pessoas conosco com um forte sentido de identidade em uma missão partilhada. Desse grupo, saiu a ideia de fazer um projeto apostólico em longo prazo, até 2020, que ainda está em execução. Foram anos muito intensos, uma reflexão muito interessante, em que a Cúria era somente um agente catalisador, como o qual se envolveu muita gente, leigos e jesuítas, e que durou vários anos até chegar às grandes orientações da província.

Chegámos a um momento em que conseguimos atingir um sentido de sujeito apostólico. Essa expressão, agora comum, nasceu naquele momento na Venezuela. Aí vivi em primeira pessoa a intuição de que a missão apostólica não nos pertence. Isso não é algo que eu tenha lido, é algo que experimentei ao encontrar-me com pessoas que vivem a missão com mais profundidade do que eu, em condições bem mais difíceis. Ao fim e ao cabo, nós temos liberdade para fazer muitas coisas, mas há muitos colaboradores que o fazem enquanto se encarregam de uma família e em situações bem complexas, sem diminuir, por causa disso, o seu grande compromisso com a missão. A raiz desse movimento começa com a necessidade de criar condições para fomentar a identidade partilhada. Assim como são necessários 20 anos para formar um jesuíta, com estudos, experiências, exercícios, etc., começamos a pensar em uma oferta de formação e experiências mais sistemática para os leigos. Daí surgiram novas formas de oferecer Exercícios Espirituais a todos os níveis sociais, ou o movimento Huellas, um itinerário de formação para jovens. A ideia de fundo é que a experiência cristã é uma experiência de formação na fé, em que se junta o compromisso apostólico com a formação e com a vida espiritual e o conhecimento do país.

“A ideia de fundo é que a experiência cristã é uma experiência de formação na fé, em que se junta o compromisso apostólico com a formação e com a vida espiritual e o conhecimento do país”

Universidade de Fronteira em Táchira

Táchira fica a 1000 km de Caracas, na fronteira com a Colômbia, e ali não havia possibilidade de fazer estudos universitários. Durante os anos que antecederam o Concílio, o bispo de Táchira intuiu que a forma de manter a gente jovem naquela zona era criar uma universidade. Os jesuítas ajudaram a fazer uma extensão da Universidade Católica Andrés Bello, em Táchira, sob a responsabilidade da diocese. Após 20 anos, ela tornou-se a Universidade Católica de Táchira.

Quando cheguei, a universidade estava mais ou menos consolidada, havendo a necessidade de dar novo impulso ao seu crescimento, tanto institucional como em relação à missão. Fizemos um novo campus, aumentou o número de estudantes, mas, sobretudo, colocamos muita ênfase em fomentar o contato com a realidade, a chave do nosso conceito de formação integral, que vai além do acadêmico.

Em Táchira, além da universidade, os jesuítas têm duas paróquias na zona da fronteira, uma emissora de rádio e cinco escolas Fé e Alegria. Do lado de lá da fronteira, na parte colombiana, também há instituições da Companhia de Jesus, especialmente escolas Fé e Alegria. Assim, surgiu a hipótese de trabalhar em um projeto interprovincial e regional, já que, nessa zona, a fronteira é completamente artificial. É verdade que há razões históricas, mas é a mesma cultura, a mesma gente e mesmo as famílias estão divididas entre os dois lados da fronteira. É a fronteira mais fluida entre a Venezuela e a Colômbia e aproveitamos esse forte sentido de identidade para criar uma zona apostólica que junta duas nações em vários tipos de trabalhos, próprios da Companhia, como a Educação (universitária, primária, secundária), o trabalho pastoral, o trabalho com refugiados. Fizemos um trabalho interessantíssimo porque os estudantes participavam nas atividades da pastoral e os centros educativos e o resto das obras tinham a universidade como centro de referência.

Experiências de articulação latino-americana

O tempo como provincial foi também um momento para entrar em contato com a Companhia de Jesus e a Igreja latino-americana. Destacaria três experiências muito fortes da construção conjunta nesses anos:

A Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina (CPAL) nasceu quando eu era Provincial da Venezuela. A decisão de manter duas Assistências, mas criar uma única Conferência, já estava devidamente amadurecida. O arranque da CPAL foi uma aposta na articulação, contra o parecer de muita gente. Devemos muito à tenacidade do padre Francisco Ivern. A América Latina é muito diversa e grande, do México à Patagônia, vai uma distância significativa, e o Caribe não tem nada a ver com a Argentina. O nosso esforço implicava romper com uma tradição muito antiga em que a América Latina Norte e a Sul seguem caminhos separados. Mas pusemos mãos à obra e começaram a aparecer projetos comuns.

“O tempo como provincial foi também um momento para entrar em contato com a Companhia de Jesus e a Igreja latino-americana”

A outra foi o nascimento da Associação de Universidades Confiadas à Companhia de Jesus na América Latina (AUSJAL). Foi uma belíssima experiência participar na evolução da AUSJAL até se tornar efetivamente uma rede. Passar de um clube de amigos, onde os reitores reuniam-se uma vez por ano para a partilha de experiências, para uma organização na qual o que funciona é o corpo – o que chamamos de “grupos de homólogos” –, promovendo projetos sobre pobreza ou liderança juvenil e nos quais participam várias universidades. Assim, foi se criando a rede. Na minha experiência de universidade pequena, isolada, na fronteira, AUSJAL foi uma lufada de ar, abria possibilidades de experiências, intercâmbio de professores, de estudantes, ideias, projetos, que dão outra dimensão ao sentido de manter projetos frágeis, mas significativos.

A terceira experiência de articulação supra provincial foi o nascimento de Fé e Alegria e a sua transformação em uma rede internacional. A minha relação com Fé e Alegria é muito antiga. Realmente tenho que dizer que comecei a conhecer os bairros por meio da iniciativa. No Colégio de San Ignacio, quando estava no 7º ano – quando surgiu Fé e Alegria –, já íamos aos bairros por mão desse movimento. No secundário, eu era um apaixonado por Biologia, os meus pais ofereceram-me um microscópio e eu ia com muita frequência ao bairro de Petares, ao colégio Madre Emília, um dos primeiros colégios de Fé e Alegria. Quando entrei na Companhia, a minha mãe perguntou-me: “E que você vai fazer com o microscópio, ofereça ao colégio Madre Emilia?”. O padre Vélaz, fundador de Fé e Alegria, era uma pessoa conhecida no círculo em que nos movíamos. Poder apoiar e ver o crescimento desse trabalho como rede internacional foi uma experiência muito gozosa. As redes são especialmente importantes nas fronteiras, onde os recursos são muito escassos. É um privilégio ver como a pertença a uma rede torna possível a existência de uma escola Fé e Alegria em zonas muito vulneráveis, com uma força que nunca teria por si mesma.

Experiência no governo central

Vivi a 32ª CG quando estudava em Roma. Nunca esquecerei o que foi escutar o próprio Arrupe contar aos estudantes do Gesù7 a sua experiência nessa Congregação tão importante para a Companhia. A minha primeira vez como delegado foi na 33ª CG, para a qual fui eleito quando tinha somente 34 anos. Era o congregado mais novo. Foi uma vivência muito intensa, um momento complexo em que não era fácil acertar e vivemos o rápido consenso na eleição de Kolvenbach como uma experiência realmente inspiradora. O novo Padre Geral geriu magistralmente a transição até recuperar a confiança de outros setores da Igreja, sem que deixássemos de aprofundar as grandes intuições da 32ª CG. Participei também na 34ª CG, muito próximo do padre Michael Czerny, que tinha a responsabilidade de coordenar a comissão de justiça social. Aí conheci o padre Adolfo Nicolás, que era o secretário da Congregação.

A minha ligação ao governo central começa na 35ª CG, quando o padre Nicolás cria os assistentes não residentes (alguns chamavam-nos assistentes “voláteis” ou “voadores”…). Depois de ser eleito, disse-me em um corredor: “Quero que participe no governo da Companhia, mas não desde aqui”. Nomearam eu e o padre Mark Rotsaert, e foi uma experiência interessante, pois participávamos no conselho geral sem viver em Roma. Essencialmente, vínhamos nos tempos fortes, 3 vezes por ano, e trazíamos um olhar e uma voz que rompia com o cotidiano. Foi uma etapa esgotante, mas aprendi muito, pois exigia manter contato com a Companhia de Jesus universal, no nível de governo geral, não em contexto deliberativo, como nas Congregações.

“Devo dizer que a experiência destes dois anos aqui tem sido muito interessante. É diferente ser estudante na Gregoriana, com 28 anos, e vir aos 60 para ser responsável por 400 jesuítas que trabalham nas casas internacionais. “

Uns anos depois, o assistente enviou-me um e-mail perguntando-me “como você vê a possibilidade de trabalhar como responsável das casas internacionais de Roma?” e eu retorqui com a resposta clássica de um jesuíta: “Entrei na Companhia para fazer o que me dizem, não o que quero, mas parece-me que…” e expliquei todos os argumentos para o não. Honestamente, estava muito tranquilo porque pensava que as casas internacionais em Roma estavam fora das minhas competências e, além disso, tinha sido muito crítico delas. Umas semanas depois, chegou a minha nomeação. Não me perguntaram mais nada. O provincial chamou-me e disse-me “tenho uma notícia que nem consigo lhe dar, nem consigo falar, pois não sei o que vamos fazer com a universidade se você for embora”. E assim acabei por vir a Roma uma segunda vez.

Devo dizer que a experiência destes dois anos aqui tem sido muito interessante. É diferente ser estudante na Gregoriana, com 28 anos, e vir aos 60 para ser responsável por 400 jesuítas que trabalham nas casas internacionais. Esta nova perspectiva implica conhecer melhor as pessoas e as dinâmicas das instituições. Tenho que reconhecer os grandes esforços que se fizeram nos anos anteriores em renovar estas estruturas. Agora, o grande sonho é que se constitua o consórcio universitário entre as três instituições clássicas da Companhia de Jesus em Roma.

Durante os últimos dois anos, tive ocasião de encontrar o Papa Francisco quatro ou cinco vezes, sempre por questões relacionadas com as casas internacionais da Companhia em Roma. A relação tem sido sempre muito gentil e de grande empatia, com a sintonia própria deste Papa que nasce da simpatia. Creio que a mensagem do Papa Francisco nestes últimos anos tem sido uma forma de entusiasmar a Companhia a prosseguir no caminho feito – aqui e em muitos outros lugares. Assim como na 35ª CG foi essencial o discurso de Bento XVI, neste momento, o Pontífice confirma-nos que estamos na direção própria da missão da Companhia. Anima-nos mesmo a ir além, como se dissesse “ainda estão muito longe de fazer tudo aquilo que podem”. Francisco, com o seu exemplo e conhecimento da Companhia de Jesus, confirma-nos continuamente que estamos no caminho certo.

 

NOTA

7 Nome da comunidade de jesuítas que fazem o primeiro ciclo de teologia em Roma. A comunidade é adjacente à Igreja del Gesù.

 

 

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