Em 22 de agosto, passei por San Salvador (El Salvador) e um amigo me pediu para comentar sobre um artigo que ele está escrevendo sobre as diversas interpretações a respeito da conversão de Dom Oscar Arnulfo Romero. Ele me provocou a fazer a minha própria reflexão sobre isso. Ao ouvi-la, meu amigo insistiu que eu a divulgasse por ocasião da canonização do arcebispo, em 14 de outubro. Essa é a razão pela qual compartilho minha opinião sobre o caminho percorrido por Dom Oscar até chegar a ser São Romero da América. Para isso, baseio-me no contato pessoal que tive com Dom Romero, por ter sido um de seus colaboradores próximos, quando foi arcebispo de San Salvador. Apoio-me também em alguns escritos de pessoas que o conheceram bem.
O estado da questão
Todas as pessoas que têm escrito ou foram próximas de Dom Romero concordam que houve uma grande mudança nos últimos anos de sua vida, que, entre outras coisas, foi o que motivou a sua canonização. As discrepâncias surgem quando se deseja caracterizar a mudança, localizar o momento em que ela se deu e tentar definir o que a causou. Em lugar de opinar diretamente sobre quem tem a razão ou por que existem essas discrepâncias, vou tratar de responder às seguintes perguntas que, oxalá, contribuam para descrever parte do caminho que Dom Romero trilhou, buscando realizar a vontade de Deus.
Dom Oscar Arnulfo Romero foi um arcebispo de San Salvador (El Salvador), assassinado enquanto celebrava a Eucaristia em um hospital da capital salvadorenha, em 1980. O religioso era conhecido por seu empenho em favor da paz, pela defesa dos direitos humanos e por sua luta contra a injustiça.
A. Como Dom Romero explicou a sua própria transformação?
Três citações me parecem importantes para responder a essa pergunta.
- A que a menciona no contexto da conversão da Igreja salvadorenha:
Em uma carta particular de 28 de outubro de 1977, diz o seguinte: “Certamente, durante muitos anos na Igreja, temos sido responsáveis por muitas pessoas verem a Igreja como aliada dos poderosos em termos econômicos e políticos, contribuindo assim para formar esta sociedade de injustiça em que vivemos. Deus nos está falando através dos acontecimentos, das pessoas. Ele nos falou através do padre Rutilio, do padre Alfonso Navarro, dos camponeses etc. Ele nos fala através da paz, da esperança que sentimos mesmo no meio de tanta tribulação”.
“Pessoalmente, quero ser um instrumento fiel e dócil à ação do Espírito Santo nestes tempos. Empresto ao Senhor a minha voz para ser a voz daqueles que não a têm. Chegou a hora em que cada um dos cristãos temos que responder ao chamado do Senhor”.
- A que se refere diretamente a ela
Comentou ao Cardeal Baggio em junho de 1978: “o que aconteceu na minha vida sacerdotal, tenho tratado de explicar como uma evolução do desejo que sempre tive de ser fiel ao que Deus me pede. E se antes dei a impressão de ser mais ‘prudente’ e ‘espiritual’, era porque acreditava sinceramente que, dessa forma, respondia ao Evangelho, porque as circunstâncias do meu ministério não tinham se mostrado exigir tanta fortaleza pastoral que, em consciência, creio que me era pedida nas circunstâncias em que assumi o arcebispado”.
- A que fala do impacto que lhe causou o assassinato do padre Rutilio Grande
Em abril de 1977, deu o seguinte testemunho ao padre César Jerez, quando, abertamente, lhe perguntou por que ele havia mudado: “A gente tem raízes…Nasci numa família muito pobre. Passei fome, sei o que é trabalhar desde criança… Quando vou para o seminário e me meto nos estudos e me mandam terminá-los aqui em Roma (Itália), passo anos e anos preso entre livros e vou me esquecendo das minhas origens. Fui fazendo outro mundo. Depois volto a El Salvador e me dão a responsabilidade de secretário do Bispo de São Miguel. 23 anos como pároco lá, também mergulhado entre papéis… Até que me mandam a Santiago Maria e lá volto a me topar com a miséria… Você sabe, padre, que carvão que virou brasa, nenhum sopro o acende. E não foi pouco o que nos aconteceu quando chegamos ao arcebispado, o que aconteceu com o padre Grande. Você sabe o quanto eu o apreciava. Quando olhei para Rutilio morto, pensei: se o mataram por fazer o que fazia, cabe-me trilhar o mesmo caminho… Mudei, sim, mas é que vim de volta.
Todas as pessoas que têm escrito ou foram próximas de Dom Romero concordam que houve uma grande mudança nos últimos anos de sua vida […]
B. Como percebi essa transformação de Dom Romero?
Tendo em conta esses autotestemunhos, a minha convivência com ele e, sobretudo, o ponto de vista de Jon Sobrino, parece-me que, durante a sua vida, o bispo Oscar Romero experimentou várias mudanças importantes que estão inter-relacionadas, embora nem todas se realizaram simultaneamente.
Certamente, é falso que algumas dessas mudanças consistiram na passagem de uma situação de pecado para a reconciliação com Deus, de estar contra os empobrecidos a passar a estar a favor deles, de ser antimarxista a assumir essa corrente de pensamento.
As mudanças que considero mais significativas são:
- O seu reencontro com os pobres que, como ele mesmo reconhece, aconteceu quando foi enviado a Santiago Maria. Parece-me especialmente relevante a modificação substancial no modo de vê-los e de relacionar-se com eles que assumiu sendo arcebispo de San Salvador. Deixou de ser meramente assistencialista para estar afetiva e efetivamente comprometido com eles, assumindo as suas justas reivindicações até chegar a ser a sua voz e deixar-se evangelizar por eles.
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De ser um bispo indiferente e distante do seu clero passou a ser um arcebispo próximo de seus sacerdotes e interessado em receber seu apoio e contar com a sua companhia.
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De conceber a sua missão como um envio para contribuir na instalação escatológica do Reino de Deus, por meio de uma pastoral sacramental e de uma evangelização centradas numa perspectiva quase exclusivamente espiritual e ultra-histórica, a encarnar essa missão no aqui e agora, promovendo esse reinado também na realidade salvadorenha.
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De ser um pregador a serviço da fé desencarnada da realidade, a ser um pregador interessado em explicitar e viver a dimensão política da fé cristã, interpretando e iluminando a realidade à luz do Evangelho e comprometido com a promoção da justiça.
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De ter uma visão hierárquica da Igreja, mais hierárquica, centrada em sua fidelidade ao Papa e na comunhão com os bispos, a compreendê-la como povo de Deus.
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De estar contra a teologia da libertação, por considerá-la influenciada pelo marxismo, a apoiar-se nela, junto com a doutrina social da Igreja e os documentos do Vaticano II e Medellín, para poder discernir o agravamento da situação político-econômica de El Salvador, ouvir o chamado de Deus pelos sinais dos tempos e o clamor das vítimas, e poder guiar e defender suas ovelhas até dar a vida por elas.
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De ter sérios preconceitos contra as pessoas organizadas em oposição ao governo, por considerá-las comunistas, ateias, subversivas, violentas, contra a propriedade privada, a ir descobrindo que muitas delas eram ex-catequistas, celebrantes da palavra ou católicas que estavam sendo injustamente exploradas, reprimidas por estarem buscando criar uma sociedade fraterna, para promover o bem comum, motivadas pelo Evangelho. Isso, finalmente, o levou a defender o direito que o povo tem de se organizar, de exigir suas justas reivindicações e a promover, na arquidiocese, uma pastoral de acompanhamento para os cristãos comprometidos.
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De estar absolutamente contrário à violência, vinda de onde viesse, a distinguir diferentes tipos de violência e recordar os critérios que podem torná-la tolerável como último recurso no caso de legítima defesa, sem chegar, por isso, a promovê-la.
Um exemplo que mostra claramente o ponto de partida mencionado em várias dessas mudanças é, sem dúvida, a carta pastoral O Espírito Santo na Igreja, que Dom Romero escreveu a 18 de maio de 1975, como bispo de Santiago Maria.
Também pode iluminar a primeira impressão que tive quando o conheci, em junho desse mesmo ano, por ocasião do massacre de Tres Calles, na Diocese de Santiago Maria.
Naquele dia, vários sacerdotes tínhamos chegado para solidarizar-nos com as vítimas e seus familiares. No povoado, ainda estavam na rua, sangrando, os corpos de quatro dos assassinados à bala e vários parentes choravam desconsolados, aterrorizados pelo acontecido. Quando estávamos prestes a concelebrar uma missa por todos eles, chegou Dom Romero. Obviamente, foi ele quem presidiu a Eucaristia, mas o que me incomodou foi que ele tomou de nós o microfone, ignorou-nos durante toda a cerimônia, não nos deixou tomar a palavra e fez a homilia com muita eloquência, mas de forma muito abstrata, sem mostrar a sua indignação por tão grave injustiça que acabara de acontecer.
Depois do martírio de Dom Romero, caí na conta que, embora durante a missa tenha se oposto a fazer uma denúncia pública, ele havia escrito uma carta particular ao seu ´amigo´, o presidente [Arturo Armando] Molina. O texto reflete tanto a sensibilidade do bispo ante as vítimas e a sua intenção de fazer um enérgico protesto, como os preconceitos que o impediram de interpretar corretamente o fato e pronunciar-se a respeito. Transcrevo alguns de seus parágrafos:
- Partiu-me a alma ouvir o choro amargo da mãe, das viúvas e das crianças órfãs… não menor impressão me causou o semblante de terror e de indignação que refletiam os numerosos rostos daqueles compatriotas que saudei, exortando-os à prudência…
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Cumpro com meu dever de expressar ao senhor o meu respeitoso, mas firme protesto como bispo da diocese, pela forma como os órgãos de segurança se atribuíram, indevidamente, o direito de matar e maltratar. Não tento justificar a conduta dos que foram baleados. Tampouco estou de acordo com os que instrumentalizam esses fatos lamentáveis para seus fins políticos… Rogo ao Senhor Presidente a sua intervenção decisiva, para que volte ao setor Tres Calles a paz dos lares, perdida ante a ameaça e o temor, e se faça justiça às vítimas do abuso e se restitua, de alguma forma, às famílias, pela perda daqueles que eram seu sustento.
C. Que opções fundamentais do Arcebispo Romero possibilitaram a sua transformação?
Não creio que seja necessário tentar ordenar cronologicamente as oito mudanças listadas acima nem tentar hierarquizá-las. Muito provavelmente as mais determinantes são a primeira, a terceira e a quarta. Essas foram, em parte, possíveis graças à segunda; as restantes decorreram das quatro primeiras e contribuíram, por sua vez, para que essas se aprofundassem e se consolidassem.
No entanto, o que me parece importante é identificar o que possibilitou todas essas mudanças.
Obviamente, o fator determinante foi a ação amorosa e gratuita de Deus, sem a qual não se explica como uma pessoa tão frágil, tímida e insegura como Dom Romero chegasse a ser tão forte, corajosa e coerente no cumprimento de sua missão. Mas, para que essa ação divina germinasse tão frutuosamente, Dom Romero também pôs algo de sua parte ao adotar, durante a sua vida, as seguintes opções pessoais que se converteram em princípios irrenunciáveis de ação de quem chegou a ser São Romero da América.
- Ter assumido como princípio e fundamento definitivo de sua vida buscar e realizar a vontade de Deus.
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A consequente e firme decisão de seguir a Jesus, tornando-o presente como o Bom Pastor que conhece, ama, guia, busca, cura e defende as suas ovelhas.
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O seu propósito de sentir com a Igreja, lema que escolheu na ordenação episcopal em 1970 e o manteve até o fim. O lema levou-o a ser fiel ao povo de Deus, não obstante as ameaças de morte que recebeu por defendê-lo, ao mesmo tempo em que o manteve fiel ao Papa e vinculado à Conferência Episcopal de El Salvador, apesar das dúvidas do Vaticano levantadas por tantas incompreensões, acusações, calúnias, agressões e até traições por parte dos demais bispos salvadorenhos, exceto um. Com base nelas, atreveram-se até a solicitar ao Papa que o destituísse.
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Ter assumido o seu ministério sacerdotal e episcopal como um serviço ao Povo de Deus, sendo o bispo do Sagrado Coração de Jesus, que promove a boa notícia do Reino.
Estou totalmente convencido de que esses princípios de ação ou opções pessoais de Dom Romero, em parte inspirados pela espiritualidade inaciana, foram o solo fértil que permitiu à ação divina germinar nessas mudanças que resultaram tão frutíferas.
Outro conto pessoal que pode ilustrar por que eu considero que essas atitudes fundamentais de Dom Romero tornaram possível que se desenvolvessem e consolidassem essas mudanças foi o comentário que ele mesmo me fez um dia em que se sentia inquieto e inseguro ante a possibilidade de que todas essas transformações tivessem deixado de cumprir a vontade de Deus, de ser fiel no seguimento de Jesus, no exercício do ministério sacerdotal e estivesse traindo seu lema a sentir com a Igreja. Brotaram essas inquietações ante as reações dos outros bispos, as ameaças contra ele, os desprezos e rupturas de grandes produtores de café que tinham sido seus amigos, as acusações que lhe faziam de estar dividindo a já polarizada sociedade salvadorenha, o qualificativo que lhe atribuíam de ser comunista, parcial etc.
“Pe. Moreno – ele me perguntou –, não estarei equivocado, não terei me desviado do caminho correto?” Nunca pude responder-lhe porque, nesse momento, chegou uma pessoa que interrompeu nossa conversa. Dias depois, quando tivemos a oportunidade de retomá-la, fui eu quem lhe perguntou: “Dom Romero, o que o senhor achou do questionamento que me manifestou?”. “Já o resolvi – respondeu-me, muito seguro do que dizia –, fui rezar e me confirmei que Deus estava me convidando para ouvir o clamor do seu povo, não como um mercenário que abandona suas ovelhas ameaçadas pelo lobo. Então, caí na conta que a mesma coisa aconteceu com Jesus durante a sua vida pública: chegou a ser sinal de contradição e de divisão por cumprir a vontade de seu Pai. Então, me disse – continuou Dom Romero –, se isso aconteceu com Jesus, que é o Verbo de Deus e a bondade infinita, com maior razão pode acontecer comigo que sou pecador e limitado.”
Outra reflexão que confirmava a sua conclusão era lembrar como João Paulo II pregava, quando arcebispo de Cracóvia (Polônia), em apoio aos trabalhadores poloneses.
A minha hipótese de que essas quatro opções fundamentais de Dom Romero foram as condições de possibilidade da origem, desenvolvimento e consolidação das suas mudanças, eu vejo avalizada pelas suas próprias notas pessoais escritas durante os seus últimos Exercícios Espirituais, que fez em fevereiro de 1980, um mês antes de ser assassinado.
Ao terminar a contemplação do Reino de Deus e o seguimento de Cristo, depois de ter feito a oblação que sugere Santo Inácio, concluiu: Assim concretizo minha consagração ao Coração de Jesus, que foi sempre fonte de inspiração e alegria cristã em minha vida. Coloco também sob a providência amorosa – do Pai – toda a minha vida e aceito com fé n´Ele a minha morte, por mais difícil que seja… basta-me estar feliz e confiante, saber com segurança que n´Ele estão a minha vida e minha morte, que, apesar de meus pecados, n´Ele tenho posto a minha confiança e não ficarei confundido e outros continuarão com mais sabedoria e santidade os trabalhos da Igreja e da pátria.
D. Quais foram os fatores externos que contribuíram para as mudanças de Dom Romero?
Assim como considero que é multidimensional a mudança de Dom Romero, da mesma forma creio que são múltiplos os fatores externos que também o influenciaram para gerar a sua transformação. Entre os que parecem mais importantes, destaco:
- A crescente polarização da realidade social, econômica, política e eclesial de El Salvador, agravada durante o tempo de seu arcebispado em San Salvador, considerado como sinal dos tempos, que havia que discernir.
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O nível de conscientização e compromisso social da maioria dos sacerdotes, religiosas e comunidades de base que encontrou na arquidiocese, que foram, para ele, um grande apoio e incentivo.
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A confiança que o povo sofrido depositou em Dom Romero e a firme determinação que lhe transmitiu de continuar na luta até conseguir a sua libertação, que chegou a ser uma de suas principais motivações e fonte de inspiração.
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A oportunidade que lhe proporcionou a mediação em diversos conflitos para conhecer pessoalmente líderes de organizações políticas populares e até político-militares que lhe permitiram descobrir sua motivação e trajetória cristã.
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Os documentos do Vaticano II e da Conferência de Medellín que deram a ele e à Igreja uma visão renovada e um impulso apostólico.
E. Que impacto causou em Dom Romero o assassinato do padre jesuíta Rutilio Grande?
Não há dúvida de que, entre todos os fatores externos que influenciaram nas mudanças de Oscar Arnulfo Romero, o que propiciou a integração de todos eles e acelerou o seu fortalecimento e radicalização foi o assassinato de Rutilio, pároco de Aguilares, assim como as decisões que Dom Romero tomou ante semelhante crime ocorrido três semanas depois de ter sido consagrado arcebispo.
Coincido com Jon Sobrino que ver os cadáveres dos três recém-assassinados em cima de umas mesas foi tão determinante para Dom Romero porque Rutilio era um amigo no qual confiava plenamente, como pessoa e como sacerdote. Isso lhe permitiu perguntar-se no íntimo e sem preconceitos: por que mataram o seu amigo, se era um fiel seguidor de Jesus? Supomos que respondeu: “mataram Rutilio como a Jesus, porque a sua vida e a sua missão haviam sido como as de Jesus”. Resposta que o levou a cair na conta de que, na verdade, a pastoral encarnada e comprometida do pároco de Aguilares não era um desvio, mas a forma correta de seguir Jesus. Conclusão que levou Dom Romero a tomar uma decisão congruente que determinou toda a sua vida: continuar o trabalho de Rutilio, sobretudo, o caminho de Jesus, combatendo o pecado estrutural que havia gerado esse e outros crimes similares e construindo aqui e agora o Reino de Deus, que é um reino de justiça, de fraternidade e de paz. O que, de fato, consta é que, ao final da sua reflexão, não lhe coube senão exclamar para a religiosa que, nesse momento, estava limpando o rosto ensanguentado de Rutilio: “se não mudamos hoje, não haverá quando, não é verdade, irmã?
As três decisões que tomou junto com os sacerdotes, religiosos, religiosas, agentes de pastoral da arquidiocese foram contundentes: celebrar uma única missa dominical em toda a arquidiocese, não participar de atos oficiais do governo enquanto não esclarecer e punir os culpados de crime tão hediondo, e que em todas as escolas católicas da arquidiocese houvesse três dias de reflexão sobre a doutrina social da Igreja. Essas três decisões, por um lado, evidenciaram a gravidade do assassinato, o enérgico protesto do povo de Deus e a firme decisão do arcebispo de continuar a obra de Rutilio. Por outro lado, produziram um distanciamento que chegou à ruptura com o governo de El Salvador, uma crescente oposição do núncio e dos outros bispos que continuaram a participar de eventos oficiais e, até mesmo, alguns deles continuaram a apoiar, explicitamente, o governo e os militares e a agressividade de seus antigos amigos cafeicultores.
Tudo isso contribuiu para consolidar, radicalizar, tornar definitiva a decisão tomada diante do cadáver de Rutilio.
Conclusão
As respostas às perguntas formuladas esboçam parte da trajetória que Dom Oscar Romero percorreu até chegar a ser São Romero da América, ao mesmo tempo, podem explicar por que existem diferentes opiniões sobre a caracterização, a causa, o tempo da ´conversão´ de Dom Romero, já que, a partir do meu ponto de vista, trata-se de uma mudança:
- Plurilinear, não unilinear;
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Obedece a vários fatores, não tem uma causa única;
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É um processo gradual, foi um momento-chave, cujos frutos continuaram aumentando, consolidando-se até que foi, violentamente, interrompido por uma bala expansiva, que penetrou no coração de Dom Romero no momento em que celebrava a Eucaristia no pequeno hospital onde vivia.
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O assassinato de Rutilio foi o fator determinante, iluminador, integrador e catalisador de todo esse processo.
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Essa é uma evolução dialética que inclui um salto qualitativo na forma como Dom Romero entendeu e viveu a sua missão: sem negar o que acreditava, dizia e fazia anteriormente, encarnou-o, transcendeu-o e radicalizou desde uma perspectiva mais plena e evangélica;
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Esse salto pode ser descrito como a mudança na forma como conceber e viver o seu cumprimento da vontade de Deus, o seu seguimento de Jesus, a sua forma de sentir com a Igreja, de exercer o seu ministério sacerdotal passou de promover uma instauração espiritualizada, ultra-histórica do Reino de Deus para colaborar na encarnação, na historicização desse reinado que, embora transcendente, também inclui uma manifestação no aqui e agora, no espaço e no tempo na história. Esse passo Dom Romero o deu apoiado e motivado por seus sacerdotes, fê-lo a partir da perspectiva dos empobrecidos dos/das excluídos/as, das vítimas da repressão. Tudo isso fez com que o povo, a sua ´pobrería´, entrasse de outra forma no seu coração e na sua mente, e fizesse dele um homem e um novo crente, sem fissura, um ser humano e um crente completo.
Por isso o Papa Francisco, na carta de beatificação de Dom Romero, caracteriza-o como:
• Bispo, Mártir
• Pastor de acordo com o coração de Cristo
• Evangelizador e pai dos pobres
• Testemunho heroico do Reino de Deus, Reino de justiça, fraternidade e paz
Da mesma forma, na carta do dia da beatificação, o Bispo de Roma conclui: “Os que têm Dom Romero como amigo na fé, os que o invocam como protetor e intercessor, os que admiram a sua figura, encontram nele força e ânimo para construir o Reino de Deus, para comprometer-se com uma ordem social mais equitativa e digna”.
Fonte: CPAL (Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e Caribe)