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Acolher a sabedoria indígena e o real significado da sinodalidade por meio da itinerância

O objetivo da visita ao Vicariato de Puerto Leguizamo-Solano, na Amazônia colombiana, era conhecer a realidade local e apoiar o trabalho desenvolvido pelos itinerantes (sacerdotes, religiosas, leigos) que ali doam as suas vidas, em uma região ainda marcada pela violência dos conflitos armados que já fez milhares de vítimas no país vizinho, mas também pela forte presença dos povos originários e suas tradições milenares. Além disso, também serviu para preparar com as lideranças eclesiais o próximo encontro da Rede Itinerante, que é fruto de uma articulação entre a Repam e a Clar para fortalecer as atuais Equipes Itinerantes e fomentar que surjam outras por toda a Pan-Amazônia, um desejo confirmado pelo Sínodo sobre a Amazônia, que propôs “formar uma rede itinerante que reúna os diferentes esforços das equipes que acompanham e dinamizam as comunidades” (cf. Documento Final, 40).

Na chegada, os visitantes foram acolhidos pelo Pe. José Fernando Flórez Arias, IMC, missionário da Consolata, e pela Ir. Nancy Negrón Ortiz, MBP, missionária do Bom Pastor, que junto com a líder pastoral Tania Ruiz Cardona, a estudante universitária de Comunicação Paula Tatiana Castro Paniagua e o jovem piloto do barco Jhairsinio Falcón Mori formavam a equipe que passou a Semana Santa distribuída em várias comunidades, cujo único acesso é pelo rio.

Convivência com os povos indígenas

Vindo de outra região da Colômbia, Pe. José Fernando atua há dez anos como responsável pelo Posto missionário de Soplín Vargas, no Alto Putumayo, pertencente ao Vicariato Apostólico  “San José del Amazonas”, na margem peruana do rio. Ao relatar a história da formação das comunidades que atende e da situação eclesial e social atual daquela região, o missionário compartilhou também o seu processo pessoal de inculturação e conversão constante, na convivência com os povos indígenas e a sua espiritualidade do “bem viver”. Sentindo-se apaixonado por aquilo que faz, o sacerdote recorda as palavras do Papa Francisco, quando visitou a Amazônia peruana (Puerto Maldonado) em 2018: “O Papa insistiu em apaixonar-se pelo nosso território; conhecê-lo melhor, poder amá-lo, respeitá-lo e cuidar dele”.

Por sua vez, Ir. Nancy compartilhou a sua experiência de discernimento que a trouxe de Porto Rico para a Amazônia, onde atualmente faz parte de uma equipe intercongregacional com mais duas religiosas. Ela acredita muito na itinerância como um modo de aprendermos a trabalhar e a caminhar juntos e de chegar a lugares onde sozinhos seria muito mais difícil. Falando sobre como tem sido essa experiência, Ir. Nancy afirma que “navegar de um lugar a outro pelos grandes rios da Amazônia é uma experiência fascinante e uma grande aventura por tudo que podemos ver, sentir, respirar, ouvir e contemplar. Estou aprendendo que navegar pelos rios é estar disposta a me deixar configurar vagando em fluxo contínuo pelo canal profundo, que não se vê com facilidade. Querer ser itinerante, como Jesus, tem me ajudado a colocar na mochila apenas o essencial. Não só no aspecto prático, de levar o essencial para poder passar a noite lá, mas na dimensão espiritual do que significa caminhar leve, abertamente, sem outro horizonte senão Jesus e sua paixão pelo Reino”.

A presença na equipe de duas mulheres leigas, Tânia e Paula, além das duas religiosas, evidencia ainda mais a força da presença feminina na Igreja da Amazônia, como já reconhecera o Papa Francisco, ao afirmar: “Entendemos radicalmente porque sem as mulheres (a Igreja) desmorona, como teriam desmoronado tantas comunidades da Amazônia se não estivessem lá as mulheres a apoiá-las, a tomar conta delas” (Querida Amazônia, 101).

Itinerância pelo Rio Putumayo

Antes de partir pelo Rio Putumayo, a equipe missionária foi recebida oficialmente pelo bispo do Vicariato de  Puerto Leguizamo-Solano e missionário Consolata, Dom Joaquín Humberto Pinzón Güiza, IMC, que manifestou a sua alegria pela presença dos assessores da Conferência Latino-americana de Religiosos (Clar) e da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), em uma região e igreja tão distante dos grandes centros. Segundo o religioso, isso mostra a importância de se ir ao encontro das periferias geográficas e existenciais, para escutar ali a voz do Espírito, que fala em defesa da vida e da Casa Comum. Dom Joaquín manifestou ainda que as portas do Vicariato estão abertas para a realização do encontro da Rede Itinerante, em agosto. E, em sinal de comunhão e respeito com os povos indígenas, os visitantes estiveram na mesma noite na “maloca” (construção típica dos povos originários amazônicos, que serve como habitação e também para momentos rituais)  do cacique local, para igualmente pedir a sua licença para entrar no território indígena, sendo por ele igualmente bem recebidos.

No dia seguinte, a equipe iniciou a itinerância percorrendo em uma pequena lancha as águas do imenso rio Putumayo, parando nas comunidades, onde ficariam um ou dois missionários para ali passar a Semana Santa, enquanto os demais prosseguiram viagem até a próxima comunidade. A maioria dessas comunidades é formada pelo povo Murui, enquanto outras pertencem à etnia Kichwa. Por se tratar de comunidades ao mesmo tempo indígenas e católicas é muito comum encontrar nesses territórios uma capela construída próximo da maloca, sendo ambos os locais utilizados para a realização dos ritos litúrgicos cristãos e das tradições ancestrais dos povos originários, convivendo em perfeita harmonia, pois, como ensinou um dos caciques, “o nosso Deus é um só e quer que vivamos em paz e praticando o bem entre nós e com os demais seres vivos”. De fato, a pedido da comunidade onde ficaram o Pe. Adelson Araújo, SJ,  e Maria Helena, a celebração da Vigília Pascal do Sábado Santo ocorreu no interior da maloca, seguindo a liturgia tradicional do missal romano em um ambiente totalmente inculturado e familiar para aquele povo, que depois da missa expressou a sua alegria e gratidão com danças e cantos próprios da língua murui.

Essa harmonia com que esses povos sabem lidar com a sua fé cristã e as suas tradições passadas de geração em geração, é sem dúvida testemunho vivo de encarnação e inculturação da mensagem do Evangelho, confirmando que longe de levar Deus àquelas culturas, o missionário deve chegar aberto para reconhecer a presença divina já presente alí, antes mesmo da sua chegada, uma vez que Deus “arma a sua tenda” em nosso meio, pela encarnação do seu Filho, em todas as culturas. Por outro lado, observar o modo harmônico como os povos indígenas se relacionam com a natureza nos ensina que o universo é feito das redes de relações, pois tudo está interligado e interrelacionado, como tantas vezes afirmou o Papa Francisco: “Tudo está conectado. Por isso, é necessária uma preocupação com o meio ambiente, um amor sincero pelo ser humano e um compromisso constante com os problemas da sociedade” (Laudato Sí, 91).

De fato, o que para nós, cristãos ditos “civilizados” é quase impossível de se praticar, os nossos irmãos da Floresta Amazônica vivem de modo natural e sapiencial. Comentando o impacto de tudo isso na sua experiência pessoal, Ir. Nancy conta que a cosmologia dos povos originários “é uma realidade totalmente nova para mim, na qual me coloco com carinho e respeito, ouvindo para aprender sobre uma nova visão de mundo e da divindade. Gosto muito da forma como se relacionam com a Mãe Terra, do compromisso que eles têm com o cuidado da Casa Comum e sua forma de se organizar para resolver os desafios que enfrentam como comunidade”. Da sua parte, Pe. Adelson acrescenta que, como professor de Teologia Espiritual, pôde perceber nesses dias passados com o povo Murui, que aquilo que nós, teóricos buscamos compreender e explicar, é o que eles, nossos irmãos indígenas, já vivem na prática e com muita simplicidade e autenticidade.

Em tempos de caminhar para a sinodalidade, como somos chamados a fazer hoje na Igreja, ter tido a oportunidade de caminhar junto com esses povos do Rio Putumayo, durante a Semana Santa,  para viver com eles o Tríduo Pascal e partilhar da sua espiritualidade e prática do bem viver, certamente tornou ainda mais viva a celebração da presença do Ressuscitado entre nós, nesses poucos dias de missão e de itinerância pela querida Amazônia.

Pe. Adelson Araújo dos Santos, SJ

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