Marco Vannini (foto), filósofo e teólogo, é um dos maiores estudiosos italianos da mística especulativa. Em entrevista especial para a IHU-Online, da Unisinos, ele comenta a relação entre fé e história sob a ótica da renúncia do Papa Bento XVI.
IHU On-Line — Em que sentido o verdadeiro drama do Papa trata da fé que perdeu seus fundamentos históricos?
Marco Vannini — Eu acredito que o Papa, que é acima de tudo um grande estudioso, se interrogou seriamente sobre o problema dos fundamentos históricos da fé e da religião cristã, que quer ser uma fé e uma religião fundamentadas sobre uma realidade histórica: primeiro, a da tradição bíblica veterotestamentária; depois, e principalmente, a que concerne às vicissitudes de Jesus, de sua mãe Maria, da constituição da comunidade primitiva etc. Não por acaso ele dedicou os últimos anos do seu trabalho de pesquisa à escrita de uma Vida de Jesus, certamente defendendo aquela verdade histórica, mas também admitindo que as hipóteses racionalistas são fundadas e que, em última análise, o que conta é o Christus pro me, ou seja, o Cristo da fé. Eu não posso e não quero entrar na consciência do papa, mas eu acredito que ele deve ter vivido de modo dramático o problema da relação entre fé e história.
IHU On-Line — Como a Igreja pode dialogar com a modernidade, secularizada e marcada pelo niilismo?
Marco Vannini — Niilismo é uma palavra moderna, que remonta somente ao século XIX, mas a reflexão sobre o nada (nihil) e, de fato, o fato de olhar resolutamente no rosto do nada, sem que a imaginação intervenha para “tapar os buracos” dos quais a graça pode chegar — como dizia Simone Weil —, pertence à própria história do cristianismo e da Igreja. Sem incomodar mais uma vez o autor que eu mais admiro, Mestre Eckhart, basta pensar no Doutor místico por excelência, São João da Cruz, que não se cansa de ensinar que a fé não produz nenhum conhecimento, mas, ao contrário, tira do caminho todo conhecimento e leva à “noite”, ou seja, ao “nada”. Nada, nada, nada, repete o místico castelhano, porque é nesse nada, ou seja, nesse vazio que a inteligência faz de todo pretenso “saber”, que se revela a luz de Deus. Eu acrescento que um estudioso francês, Georges Morel, em um estudo muito amplo sobre São João da Cruz, evidenciou as afinidades entre o carmelita e Hegel. Pois bem, eu acredito que, na tradição filosófico-teológica do mundo cristão, existem todos os recursos para enfrentar o chamado niilismo contemporâneo, do qual, no entanto, não se pode negar o caráter purificatório com relação a tantos pretensos, justamente, “saberes” do passado.
IHU On-Line — Nesse contexto, a fé e a instituição Igreja, assim como o Estado, foram abaladas pelo niilismo? Por quê?
Marco Vannini — Como eu já disse, não acredito, de fato, que a Igreja e a fé tenham sido abaladas pelo niilismo. O niilismo derrubou certezas ilusórias, forçando, como diz Hegel na Fenomenologia do Espírito, a “olhar no rosto o negativo e a se deter junto a ele”, ou seja, a reconhecer honestamente a relatividade de tantas coisas que haviam sido dadas como absolutas, sem tentar escapatórias. Certamente, isso implica uma profunda revisão da própria fé, que, de crença, deve tornar-se o que ela realmente é, ou seja, conhecimento, conhecimento do espírito no espírito.
IHU On-Line — Em que aspectos Bento XVI é o “último papa”, para usar a expressão de Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”?
Marco Vannini — A renúncia do Papa Bento XVI me fez pensar nas páginas que Nietzsche, na última parte do sua obra Assim falou Zaratustra, dedica ao encontro entre Zaratustra e o último papa, já “fora de serviço”, justamente pela razão que eu acabei de expor. O papa de Zaratustra é o representante de uma religião que ensinou que “Deus é Espírito” e com isso abriu o caminho para a incredulidade, porque é muito fácil que a negação de Deus como ente abra caminho para o ateísmo. Zaratustra sente uma certa familiaridade ou, melhor, simpatia por aquele velho último papa, já que, como eu disse antes, no fundo, ele também, o ateu Zaratustra, continua recebendo luz daquela antiga concepção platônica pela qual a verdade é Deus, Deus é a verdade: “É um Deus qualquer — paradoxalmente — que o converteu ao ateísmo”. O último papa e Zaratustra, de fato, têm em comum justamente isto: a negação de Deus como ente — que o é, escrevia Eckhart, apenas para os pecadores — e a afirmação do divino, ou seja, da verdade como espírito.
IHU On-Line — Que mudanças se mostram possíveis na Igreja a partir da renúncia do Sumo-Pontífice?
Marco Vannini — A renúncia do Papa me pareceu um gesto de grandíssima nobreza, humildade e dignidade ao mesmo tempo. Eu não sei o que ela vai mudar na vida da Igreja, mas indubitavelmente irá marcá-la de forma positiva, pela força que o exemplo tem em si.
IHU On-Line — Em que sentido essa renúncia traz uma oportunidade de reflexão e exame para a Igreja?
Marco Vannini — Como disse acima, esse exemplo atingiu profundamente a todos, e não apenas os católicos. Na Itália, onde eu vivo, houve imediatamente um redespertar extraordinário de interesse pela Igreja, pela sua história, pelo seu futuro. Mesmo os chamados “laicos” foram atingidos nas suas tranquilas certezas, diante de um gesto tão imprevisto, que pode ser interpretado como um sinal de crise, mas também de vitalidade, de juventude, de liberdade do espírito. Obviamente, isso vale ainda mais para a Igreja, que, especificamente, deve se interrogar justamente sobre o significado do poder, lembrando que ministro, ministério vêm do latim, minus, que significa menos e remete, por isso, evangelicamente, à humildade do serviço, e não ao poder.
IHU On-Line — Há 40 anos, Ratzinger “previa” uma igreja que voltaria às suas origens. Como essa previsão pode ser compreendida hoje?
Marco Vannini — Essa pergunta nos remete, oportunamente, aos problemas realmente essenciais, que não são, a meu ver, os da atualidade, por mais grave e dolorosa que possa ser (a pedofilia, o escândalo do secretário-mordomo etc.). Retornar às origens da Igreja como retornar às origens e às razões profundas da fé. O Papa, estudioso de Santo Agostinho, conhece bem o antigo lema Ecclesia semper reformanda, a Igreja sempre precisa de reforma, ou seja, sempre precisa se “reconformar” com as suas raízes evangélicas, redescobrindo as razões da fé no profundo da própria consciência. O quarto Evangelho se conclui com as palavras que Jesus dirige a Tomé, que acredita só porque viu: “Bem-aventurados os que creem sem ter visto”, ou seja, acreditam pelo único testemunho que realmente propicia a bem-aventurança, o testemunho interior, testimonium spiritus sancti.
Fonte: IHU On-line