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Jesuíta alerta sobre os riscos da privatização do saneamento básico no Brasil

“A privatização do saneamento básico transforma um bem fundamental em mercadoria e em meio de enriquecimento para uma pequena elite composta por grandes empresários e banqueiros”, alerta o jesuíta, cientista social e ativista pela defesa dos direitos humanos, com foco na luta pelo direito humano à água e ao saneamento básico, padre Sandoval Rocha.

Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil em dezembro, com a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei que atualiza o Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4162/19). Dentre outros itens, o texto prevê a redução da presença do Estado no setor, facilitando a privatização dos serviços de água e saneamento básico. Esta é a terceira tentativa do governo de mudar as regras para este tipo de serviço. Até o momento, o texto encontra-se sob análise do Senado Federal, depois deve seguir para a sanção do presidente da República.

Para esclarecer o novo Marco Legal do Saneamento, conversamos com o padre Sandoval, cuja tese de doutorado tratou do acesso à água em Manaus, cidade que há duas décadas vive as consequências da privatização desse serviço. O jesuíta tem ainda em seu currículo 8 anos como colaborador do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), obra da Companhia de Jesus. A entrevista completa, você confere a seguir.

Qual sua avaliação a respeito do projeto que altera o marco regulatório do saneamento básico (PL 4162/19)? Ele transforma um direito básico, como o acesso a água, em negócio?

Com argumento de ampliar a competitividade no setor de saneamento, o PL nº 4162/2019 desconstrói uma legislação progressista que ainda nem teve a oportunidade de ser implantada, mas apenas iniciada, a Lei 11.445/2007.

A Lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais do saneamento básico, é resultado de um grande esforço da sociedade civil que remonta à época das articulações pela redemocratização brasileira, buscando fortalecer a atuação e a responsabilidade do Estado na implantação do direito ao saneamento básico. Claro que somente a legislação não resolveria o problema do saneamento no Brasil. Seria ainda preciso mudar a tradição autoritária e excludente do Estado, a partir de uma forte mobilização nacional. Mas, com o PL 4162/2019, boa parte destas conquistas do marco legal foi anulada: a obrigatoriedade do financiamento estatal, a regulação dos serviços, uma atenção especial pelas populações mais vulneráveis e a fiscalização dos serviços em nível nacional.

A privatização, que é estimulada pelo PL, refere-se a uma experiência que muitos países fizeram e que hoje estão querendo superar, pois perceberam que as empresas privadas não se interessam pela comunidade, mas correm atrás de lucros cada vez maiores. Segundo o Transnational Institute, entre 2000 e 2017, cerca de 900 serviços foram reestatizados no mundo. Aproximadamente, 83% dos casos mapeados aconteceram de 2009 em diante. Na Alemanha, nas duas últimas décadas, 348 empresas voltaram a ser estatais. Os Estados Unidos reestatizaram 150 empresas que haviam sido privatizadas. O que indica que eles descobriram que a privatização não é a solução.

Quais são as possíveis consequências?

Na medida em que o PL estimula a entrada da iniciativa privada no setor, ele abre a possibilidade da criação de monopólios privados no saneamento básico em grandes e diversas áreas, deixando as populações reféns dos grandes empresários, banqueiros e financiadores externos. Estas classes não entram em um negócio se não garantem a obtenção de grandes retornos econômicos, portanto, uma consequência imediata será o aumento significativo das tarifas, prejudicando as populações de menor poder aquisitivo.

Há casos concretos no Brasil mostrando que a iniciativa privada do saneamento não se interessa pelas periferias das grandes cidades nem pelas zonas rurais, pois estas não oferecem o retorno financeiro esperado. Eles vão ficar somente com as áreas mais desenvolvidas, onde os lucros são garantidos. As áreas mais pobres serão assumidas pelo Estado, que não tendo mais as grandes estatais que produzem recursos, ficará sem condições de investir no saneamento básico. Em outras palavras, as regiões mais pobres ficarão abandonadas, amargando o desprezo e a humilhação por tempo indeterminado.

Com o novo PL, outro efeito é que o importante instituto dos subsídios cruzados desaparecerá, acabando também com o ideal da universalização do saneamento básico. Este instituto, que obriga uma empresa aplicar nas áreas mais pobres os recursos obtidos nas zonas mais ricas, será desativado.

Uma consequência lógica de todo este processo será a permanente violação do direito humano à água e ao saneamento. A implantação deste direito, que foi reconhecido em 2010, é um dos grandes desafios propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU). O 6º Objetivo do Desenvolvimento Sustentável refere-se a esta fundamental temática, que desperta a preocupação das instituições internacionais. O Brasil, à medida que se lança nesta guinada privatista, contribui para que este objetivo não seja alcançado.

Qual modelo o senhor defende para resolver os problemas de acesso ao saneamento no Brasil?

Defendo um modelo que proporcione maior participação da comunidade na gestão dos serviços públicos em geral e no abastecimento, em particular. Quanto mais democrático é o modelo, mais as populações serão beneficiadas e as diferentes necessidades serão contempladas. Para que isso aconteça é necessário que as pessoas sejam educadas para a democracia e para a cidadania.

Há iniciativas em que a própria comunidade se organiza para fazer a gestão da água. Eu pude conhecer uma destas experiências no Amazonas, onde um bairro de Manaus não se submeteu ao controle da concessionária privada e se organizou para a própria população gerir o abastecimento, alcançando bons níveis de satisfação. Construíram um sistema de abastecimento comunitário em que a água é captada de poços, tratada e distribuída nas casas. Fixaram uma tarifa acessível a todas as famílias e prestam contas comunitárias daquilo que é arrecadado.

O modelo deve ser adaptado para cada realidade urbana e rural. O importante é que a população participe dos processos de decisão e implementação dos serviços. O Estado deve se abrir a estes modelos alternativos e incentivá-los com robustas políticas de financiamento.

Em Manaus, o serviço de água foi privatizado. Fale sobre essa experiência.

Os serviços de abastecimento de água e esgoto de Manaus foram privatizados em julho de 2000 mediante um processo polêmico e bastante conturbado. O que se nota ao longo de duas décadas de privatização é que o sistema é precário e excludente, principalmente nas periferias da cidade.

Desde que o saneamento básico foi privatizado em Manaus, quatro empresas já assumiram a concessão do serviço na cidade. O que se nota é que as três primeiras não tiveram a competência necessária para resolver o problema da falta de água. Todas saíram com suas imagens bastante negativas, uma vez que prometeram, mas não cumpriram com as metas. Em outras palavras, a cidade é enganada há duas décadas. 

Oficialmente, existe um total de 228.889 pessoas sem acesso à água potável em Manaus e um contingente de 1.869.202 pessoas sem esgotamento sanitário (SNIS 2017). Os esgotos são lançados sem tratamento nos igarapés e rios locais. Além disso, as tarifas de água cobradas na cidade são as mais caras da região amazônica, dificultando a vida de muita gente cujo poder aquisitivo é reduzido. Em Manaus, 128 mil famílias têm direito à tarifa social, que possibilita o usuário pagar 50% do preço, quando se usa até 15 mil litros de água por mês. Trata-se dos contemplados pelo Programa Bolsa Família. No entanto, somente 16 mil famílias estão efetivamente usufruindo deste direito, pois não interessa à empresa que todos sejam beneficiados. Uma verdadeira injustiça.

Temos que olhar do lado daqueles que não podem pagar, do lado dos mais pobres. Aí estão as pessoas que precisam do nosso apoio e solidariedade, mas o sistema de mercado não se preocupa com estes setores sociais. Por isso penso que a privatização é inviável, principalmente em regiões marcadas por grandes desigualdades e elevados índices de pobreza.

Nos conte sobre o seu trabalho no SARES no que diz respeito a luta pelo direito humano à água e ao saneamento básico.

Meu trabalho no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), obra da Companhia de Jesus, iniciou em 2012. Já naquela época eu me aproximei da temática da água, pois a precariedade dos serviços prestados pela iniciativa privada em Manaus era evidente. A cidade estava mobilizada e conseguiu, com o apoio de um então vereador da oposição, instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), visando investigar a situação dos serviços de água e esgoto. 

Foi uma época em que eu estava bastante focado nesta questão, quando também comecei a participar do Fórum das Águas de Manaus, que existe até hoje, tendo o SARES como um dos apoiadores.

A partir daquele momento, me interessei em aprofundar a questão, decidindo fazer uma pesquisa sobre esta realidade dentro de um projeto de doutorado. Defendi a tese na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sendo logo em seguida destinado a continuar colaborando com o SARES e iniciar uma inserção na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, no Rio Grande do Sul. Atualmente, estas são as minhas missões.

O trabalho no SARES vai na direção de defender a importância dos direitos humanos, inclusive, o direito humano à água e ao saneamento.

O SARES e todos os seus parceiros têm consciência de que os direitos humanos são constantemente desafiados e violados, tendo que se opor a agentes muito poderosos. Nossa sociedade é caracterizada por grandes desigualdades e alguns grupos privilegiados trabalham para que elas continuem vigorando e determinando as relações entre as pessoas. Enquanto instituição, queremos colaborar para que estes direitos sejam cada vez mais respeitados e todas as pessoas tenham condições de viver com dignidade.

Possui instituições parceiras neste trabalho? Quais são?

O SARES é uma obra da Companhia de Jesus e o seu trabalho não pode ser realizado por uma só instituição, mas precisa ser compartilhado entre muitos agentes. Por isso, o SARES sempre busca consolidar as parcerias existentes e criar outras. São muitos os parceiros que atuam na sociedade civil e têm se unido ao SARES ao longo de sua existência. Não é possível citar todos eles, mas seguramente podemos encontrá-los dentro e fora da Igreja Católica. Procuramos criar redes de colaboração com todos os que querem contribuir para que a sociedade seja melhor, num esforço de defender a vida na sua integralidade.

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