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A vida cristã é essencialmente samaritana

“Se já não somos mais capazes de perceber a desumana dor ao nosso lado, também nós nos tornamos desumanizados”, é com essa citação do Papa Francisco, conclamada no início do seu pontificado, em 2013, que iniciamos a reflexão sobre a Campanha da Fraternidade (CF 2020). 

Ao escolher o tema Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso, junto com o lema Viu, sentiu compaixão e cuidou dele (Lc 10,33-34), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos convida a olhar, de modo mais atento e detalhado, para a vida. Diz o texto-base, “O tema vida emerge em nossos dias como um clamor que brota de tantos corações que sofrem de inúmeras formas e da criação que se vê espoliada”. Esse clamor se depara com a insuficiência de ações efetivas para a superação dos problemas. Basta olharmos ao nosso redor para que possamos perceber inúmeras situações nas quais a vida tem sido, continuamente, agredida. O Brasil tem, hoje, mais de 12,5 milhões de desempregados, mais de 100 mil pessoas em situação de rua e mais de 9 milhões de crianças que vivem em extrema pobreza; para citar apenas alguns poucos exemplos. Tudo isso sem falar na grande quantidade de acidentes de trânsito, nos ataques aos direitos dos povos indígenas, nos conflitos por terra e água, no desmatamento ilegal, na violência urbana e no feminicídio. A todo momento, a vida é confrontada com uma mentalidade que insiste em colocar o lucro acima das pessoas e da dignidade humana.

No texto de apresentação da Campanha da Fraternidade, a CNBB constata que chegamos a um ponto em que até mesmo a nossa condição humana mais profunda esbarra em uma série de indagações. O que vem acontecendo conosco que, embora percebamos o crescente número de sofrimentos, não mais nos sensibilizamos com eles? Será que perdemos o sentido mais profundo da vida? Por que vemos crescer tantas formas de violência e destruição? Perdemos, de fato, o valor da fraternidade?

Em meio a tantas questões, a Campanha da Fraternidade 2020 nos convoca a refletir sobre o significado mais profundo da vida e, particularmente, a encontrar caminhos para que esse sentido seja fortalecido e, algumas vezes, até mesmo reencontrado.

A CF 2020 nos motiva a olhar para as diversas realidades e nos interpela a respeito do sentido que estamos, na prática, atribuindo à vida nas suas diversas dimensões: pessoal, comunitária, social e ecológica.

Compaixão versus indiferença: qual será o nosso olhar?

Para olhar a vida e nela reforçar, ou reencontrar, o sentido, a CF 2020 baseia-se na Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), ícone da compaixão e cuidado. Nessa narrativa, Jesus apresenta dois olhares distintos: um olhar indiferente à vida – que vê o sofrimento, mas passa adiante – sacerdote e levita; outro que enxerga, permanece e se compromete com aquele que sofre – o olhar samaritano. Essa compaixão nasceu do modo próprio de olhar do samaritano, do seu modo diferente de perceber aquela realidade.

A parábola em questão nos recorda que a espiritualidade cristã, se não for ‘samaritana’, perde seu sentido e autenticidade a partir do momento em que nosso caminhar se torna indiferente e pouco habituado ao cuidado com aquele que, mesmo sendo nosso desconhecido, precisa de nossa solidariedade.

Assim como o bom samaritano, devemos colocar nossa vida à disposição do outro, não podemos ser indiferentes às dores de nossos irmãos porque Jesus fez de sua vida doação até a morte de cruz. É preciso ver, solidarizar-se e cuidar!

Santa Dulce dos Pobres, o bom samaritano nos dias de hoje

Na história da Igreja, são muitos os homens e mulheres que, pelo encontro com Jesus Cristo, testemunharam o verdadeiro sentido da compaixão. É o caso de Santa Dulce dos Pobres. Não é à toa que a vida e a obra do Anjo bom da Bahia, como é popularmente conhecida, serviu como inspiração para a Campanha da Fraternidade deste ano. Em entrevista ao Vatican News, o padre Patriky Samuel Batista, secretário executivo para campanhas da CNBB, explicou a escolha da imagem de Santa Dulce dos Pobres para ilustrar a CF 2020: “Qual seria a imagem que poderia caracterizar o bom samaritano para os dias atuais? Lembramos de diversas mulheres, religiosas, leigas, e entre tantas possibilidades, nós olhamos Santa Dulce, vida doada e vida santificada. Ela, que fez de um galinheiro uma obra de cuidados extraordinário, não somente a obra em si, mas ela mesma foi sinal da obra de Deus, no cuidado, se aproximando e cuidando. Daí a escolha de Santa Dulce como esse ícone do bom samaritano para os dias de hoje, que estimula também a caminhada missionária da Igreja. Vida doada e vida santificada!”

Não há dúvida de que Santa Dulce dos Pobres é uma das mais representativas e impactantes personificações da caridade cristã em nosso país, conforme bem lembrou o padre jesuíta Alexandre Raimundo de Souza, superior do Núcleo Apostólico Bahia: “Irmã Dulce era amiga dos mais pobres e doentes, daqueles que, muitas vezes, eram esquecidos e abandonados, os descartados…. Uma santa para o nosso tempo, uma provocação, um gesto humanitário”.

O jesuíta também fez questão de relembrar o trabalho desenvolvido por Irmã Dulce, em Salvador (BA). “Ela lutou, incansavelmente, por aqueles que não tinham voz. Fez um trabalho humanitário que, ainda hoje, pode ser sentido pelo eco de suas ações. Por isso, a Bahia se alegrou tanto com sua canonização. Mesmo quem não entendia o rito na Basílica de São Pedro, no Vaticano, vibrou com o coração, pois já ouviu, em algum momento, algum trecho da vida dessa mulher. Seu testemunho sempre foi de simplicidade e humildade. Pois bem, isso traduz o que foi a vida de Santa Dulce: uma luz para o nosso tempo. O que movia Dulce era o amor”, afirmou Pe. Alexandre.

O legado humanitário da Irmã Dulce

Obra Social irmã Dulce (OSID), em Salvador (BA)

A assertividade, traço de personalidade predominante na religiosa nascida em Salvador, destoava de sua aparência miúda e frágil. Quem conviveu com Irmã Dulce afirma que ela não tinha constrangimento algum em pedir pelos pobres e doentes. Com uma mão, batia na porta de políticos e empresários em busca de ajuda; com a outra, acolhia e confortava os mais necessitados. 

A religiosa saía pelas ruas e vielas de Salvador acudindo doentes e famintos. Não esperava que eles chegassem até ela. Aflita, sem ter onde abrigar os mais pobres, fez história num ato de ousadia. Em 1949, ocupou o galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio, adaptado para acomodar 70 enfermos.

Irmã Dulce não podia imaginar que era o começo de um legado vigoroso em prol da saúde das classes desfavorecidas. Sua obra cresceu e, em 1959, recebeu o estatuto de Obras Sociais Irmã Dulce (OSID). No ano seguinte, ela ergueu o Hospital Santo Antônio, com 150 leitos.

Atualmente, a entidade abriga um dos maiores complexos de saúde do Brasil, com 21 núcleos e cerca de 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados por ano na Bahia. Cem por cento dos atendimentos são feitos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre o público acolhido pela entidade, estão pessoas com deficiência, pacientes oncológicos, crianças e adolescentes em situação de risco social, idosos, dependentes químicos e pessoas em situação de rua.

O que fazer diante de situações nas quais a vida tem sido descuidada? 

O sentido do cuidar do outro foi se perdendo no agito da vida. Corremos sempre, por isso não temos tempo para parar e ver o outro. Como o nosso coração vai mover-se de compaixão, se, muitas vezes, nem conseguimos enxergar o irmão nas ruas? No entanto, podemos aprender muito com o exemplo de Santa Dulce dos Pobres, que soube enxergar no outro o próprio Cristo e foi incansável em sua dedicação de cuidar do próximo. Ela foi para além das regras, extrapolou paredes e permaneceu firme no propósito de ser como Jesus, cuidar das feridas dos que estavam à beira do caminho.

Em meio a todas essas questões, a CF 2020 nos convida a refletir, à luz da Palavra de Deus, sobre o sentido da vida como dom e compromisso, que se traduz em relações de mútuo cuidado com as pessoas, a família, a comunidade, a sociedade e o planeta, casa comum. O chamado é claro: precisamos ver, olhar com compaixão e cuidar das vidas fragilizadas. Precisamos fortalecer a cultura do encontro, da fraternidade e a revolução do cuidado como caminhos de superação da indiferença!

A Quaresma é tempo de conversão, de mudança interior, de reforçarmos em nós a fé. Neste tempo de exame de nossa adesão a Jesus Cristo, nos preparamos para viver, de maneira especial, o momento mais importante do ano litúrgico e da história da salvação: a Páscoa.

Ao longo desta matéria, conheça diversas ações de cuidado em favor da vida, promovidas pelas obras e serviços da Companhia de Jesus no Brasil.

 Assistência aos enfermos

O Experimento de Hospital é uma importante vivência na trajetória da formação de um jesuíta e contribui, significativamente, para o aprofundamento do discernimento vocacional dos estudantes. Hoje, essa experiência acontece no Hospital Santo Antônio (HSA), das Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), em Salvador (BA). Durante um mês, os noviços, estudantes do primeiro ano de formação como jesuíta, têm a oportunidade de conhecer todo o ambiente hospitalar e vivenciar intensamente a assistência aos enfermos.

Noviço do primeiro ano, Diego Pinheiro, de 25 anos, nos conta como recebeu a missão de ser voluntário no Hospital da Irmã Dulce: “Estive na expectativa deste experimento desde a minha admissão à Companhia de Jesus. Meu desejo era de somar os valores das minhas experiências como profissional da saúde com a espiritualidade inaciana, os conselhos evangélicos e o espírito missionário”.

Entre os diversos aprendizados proporcionados pela vivência no Experimento de Hospital, Luciano Coutinho, de 21 anos, nos fala sobre como aperfeiçoou o seu olhar de cuidado com o próximo. “Durante as visitas de leito, na maioria das vezes, senti que minha presença era mínima, todavia, capaz de fazer a diferença em gestos simples como um sorriso oportuno, uma partilha de vida, uma oração, ou um ouvido atento à escuta. São esses pequenos gestos que ‘ajudam as almas’, como queria Santo Inácio”, relatou o estudante.

Tácio Novais, de 34 anos, ressalta os aprendizados que o experimento proporcionou para a sua formação: “Este experimento representou um momento de saída de mim mesmo para encontrar o outro, fragilizado e enfermo, e ainda, de exigência e provocação para que eu faça meu MAGIS em situações diversas da minha vida”. 

Acolhida a migrantes

Organizado em diversas partes do mundo e especializado em migração, deslocamento forçado e refúgio, o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), instituição da Companhia de Jesus, tem beneficiado milhares de pessoas com a prestação de serviços gratuitos, intervenções emergenciais, projetos de educação, apoio psicossocial e pastoral. A instituição atua em favor de maior acolhimento e hospitalidade da sociedade brasileira aos migrantes e refugiados, promovendo e protegendo sua dignidade e seus direitos, acompanhando seu processo de inclusão e autonomia.

À frente dos cinco escritórios do SJMR no Brasil e do Projeto Acolhe Brasil, o diretor nacional, padre Agnaldo Junior, fala da importância dessa atuação como uma resposta cristã de acolhida, integração e amparo aos migrantes e refugiados que chegam sem assistência ao país. “A importância do nosso trabalho, primeiramente, é dizer a essas pessoas que não estão sozinhas. Elas têm companhia e estamos com elas. Creio que esse é o ponto mais importante do nosso trabalho: ser presença junto aos migrantes forçados e refugiados. Queremos que eles encontrem, em nossos espaços, um ‘ombro amigo’ e a ajuda para o que precisam, de maneira que nossa atenção e recursos estejam à disposição deles”, afirma o jesuíta.

Inserção de jovens em projetos, realidades e comunidades

A história do Voluntariado Jovem do Centro MAGIS Anchietanum teve início em 1999. A iniciativa busca promover uma experiência de inserção profunda de jovens na realidade social da cidade de São Paulo (SP), desde a assistência à população de rua, aos imigrantes, aos refugiados até aos idosos, entre outros grupos. 

As atividades são desenvolvidas em três frentes: oração, trabalho e formação. Nos dias de fim de semana, o foco é a formação e a reflexão, assim como os espaços de oração e de celebração. Durante a semana, em pequenos grupos, os participantes passam o dia em obras e projetos de acolhida e a noite em atividades de convivência e formação abertas para a comunidade, além de espaços celebrativos e de partilha.

Os principais benefícios do projeto são: a escuta atenta e acolhedora; a proximidade e o afeto; e a sensibilização acerca das diversas realidades, possibilitando mais engajamento dos jovens em suas realidades locais.

Osvaldo Meca, coordenador do Voluntariado Jovem, fala sobre a repercussão do projeto na vida dos jovens participantes. “Vejo que o principal impacto é o desejo dessa juventude de construir um reino de Deus, pautado na partilha, na comunidade. É claro que surgem resultados práticos, afinal, eles aprendem coisas sobre reciclagem, sobre outras culturas, sobre o contexto social atual. Mas destaco como principal esse efeito mais pessoal de criar uma observação sobre si mesmo como agente transformador”. 

Por fim, Osvaldo Meca explica que a essência do Voluntariado Jovem vai ao encontro  das reflexões propostas pela CF 2020. “Estamos muito conectados com o lema da Campanha da Fraternidade: Viu, sentiu compaixão e cuidou dele. Esse é um dos panos de fundo dessa experiência, a inspiração para servirmos melhor. Ver, sentir compaixão, cuidar, faz parte de todo um processo de sensibilidade, conhecimento e afeto. Acredito que os jovens que participam de experiências de voluntariado tenham bagagem para viver a CF 2020 de outra forma”.

Promoção da Justiça

Trazendo o lema O nosso campus é a cidade, a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), em seus 76 anos de história, promove pontes em que a troca de saber, competências e habilidades entre a comunidade acadêmica e as comunidades locais possa ocorrer e se desenvolver de forma mútua. Com esse espírito de solidariedade e de construção coletiva, a universidade conta, atualmente, com centros de atendimento direto à população, principalmente, a mais carente. Somente em 2019, a clínica de psicologia e psiquiatria acompanhou cerca de 600 pacientes, envolvendo 30 estagiários e, aproximadamente, 20 estudantes voluntários; já a clínica de fonoaudiologia ofereceu 445 atendimentos e diversos exames realizados por alunos e professores. Há também o atendimento em fisioterapia, que beneficiou mais de 570 pacientes.

Ainda no campo da saúde, desde que a universidade criou o curso de Medicina, em 2014, dezenas de alunos e professores atuam em campo, promovendo diversas ações focadas, principalmente, em benefício da população mais vulnerável. Além do suporte nas residências e atividades práticas realizadas em unidades básicas e hospitais públicos da área metropolitana do Recife (PE), a cada ano, tem aumentado o número de ligas de medicina, compostas por alunos acompanhados por professores, que fazem atendimentos, palestras, orientações e assessorias em diversas localidades da cidade.

Em entrevista ao Em Companhia, João Elton de Jesus, membro do Humanitas Unicap, explica como esse trabalho desenvolvido pela universidade dialoga com a proposta da CF 2020: “Sempre em busca do MAGIS, de inovação e da qualidade de seus serviços, a Unicap tem trabalhado para ampliar as suas ações, assumindo, assim, o convite da Campanha da Fraternidade 2020, que nos convida a refletir sobre a importância do cuidado com o próximo e da solidariedade”.

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