Especial: Ser Sal da Terra e Luz do Mundo

Leigos cristãos, voluntários do Hogar de Cristo (centro social da Companhia de Jesus no Equador), prestaram apoio às famílias equatorianas atingidas pelo terremoto que abalou o país em 2016

O Batismo é o primeiro dos sacramentos da vida cristã. Por meio dele, somos incorporados em um novo modo de existir, o existir em Cristo. Como sacramento da fé, ele é o que, primeiramente, une o Povo de Deus, é o que torna todos membros de um só Corpo, que é a Igreja. Dessa forma, assim como clérigos e religiosos, os leigos também constituem e são Igreja, participantes da missão de Deus no mundo. Mas você já se questionou o que significa ser leigo na Igreja hoje?

É justamente esse convite à reflexão e ao engajamento que a Igreja no Brasil nos faz ao instituir o Ano do Laicato. Com o tema Cristãos leigos e leigas, sujeitos na ‘Igreja em saída’, a serviço do Reino e o lema Sal da Terra e Luz do Mundo (Mt 5,13-14), a iniciativa tem como objetivo celebrar a presença dos cristãos leigos no País, aprofundando a sua identidade, vocação, espiritualidade e missão, a fim de serem testemunhas de Jesus Cristo e de seu Reino na sociedade.  “A intenção é dar um novo impulso, estímulo e incentivo aos leigos. Criar consciência de seu papel na Igreja e no mundo e, acima de tudo, esclarecer o que é o laicato”, afirma Marcia Regina de Carvalho, professora do curso de Teologia para leigos do Instituto de Teologia da Região Episcopal Sé (Itelsé), em São Paulo (SP)*.

Neste Ano do Laicato, como testemunhas vivas do amor de Deus e colaboradores na construção do Seu Reino, os fiéis leigos são chamados a se tornarem membros mais ativos e participativos nas questões da Igreja e da sociedade. Para Cesar Kuzma, professor de Teologia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)*, este é o momento para despertar a maturidade e a autonomia dessa vocação. “Celebrar um Ano para o Laicato quer dizer que os leigos devem assumir seu tempo na Igreja, seu espaço e sua missão no mundo, com coragem e liberdade. É o tempo dos leigos, a hora do laicato”, acredita.

No início do século XXI, a participação dos leigos nas pastorais sociais da Igreja era mais ativa. Hoje, essa atuação é bem menor, principalmente em razão de uma visão da evangelização preocupada com a conservação, por isso centrada na liturgia e na devoção. Agora, com o Papa Francisco, a Igreja tenta superar esse cenário. Segundo Marcia, a própria CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) propõe outras formas de atuação dos leigos dentro da Igreja e fora dela. Entre elas, elaborar, executar e avaliar ações em conjunto com os ministros ordenados, religiosos e religiosas, criando conselhos e mais participação em vários outros âmbitos. “O leigo tem espaço na Igreja, mas pode e deve ter ainda muito mais. Hoje, com satisfação, percebe-se um número maior de cristãos leigos e leigas que procuram uma formação teológica mais concisa e aprofundada. Atitude louvável e bem-vinda”, conta a professora.

Marcia também ressalta outros avanços na participação dos leigos dentro e fora da Igreja, como as visitas aos doentes, quando o leigo leva a Eucaristia e o conforto da Palavra. “A formação, os serviços básicos da comunidade, a animação litúrgica, a catequese, os círculos bíblicos, os grupos de reflexão e o testemunho no serviço aos mais necessitados são outras atividades desempenhadas pelo laicato que favorecem um mundo mais e melhor evangelizado”, ressalta.

“Ser leigo na Igreja hoje é tomar parte no batismo que se recebeu, fazendo opção por Cristo e pelo Reino anunciado por ele”

Cesar Kuzma, professor de Teologia da PUC-Rio

Além dessa atuação na Igreja, Cesar lembra que ‘ser leigo’ faz parte de um itinerário vocacional que deve ser assumido e gerar compromisso e entendimento, ou seja, é um caminho de construção, de autonomia e de busca de maturidade na fé. “Ser leigo na Igreja hoje é tomar parte no batismo que se recebeu, fazendo opção por Cristo e pelo Reino anunciado por ele. É dar vida a uma causa, deixando-se tocar por Deus e refletindo essa experiência em ações concretas na história, no dia a dia, na dinâmica da vida e de frente a todos os dramas e tramas humanos e sociais”, afirma, acrescentando que “olhando dessa maneira, os leigos serão parte constitutiva da missão da Igreja no mundo, com a qual, por meio de sua vida e testemunho, buscam transformar as estruturas e santificar a vida em sua volta”.

O cristão transita constantemente entre o ambiente eclesial e a vida em sociedade. Segundo Cesar, esse estar no mundo é a vocação/missão do leigo, que deve ser assumida. “Os leigos se inserem nas diversas vias da sociedade, nas diversas profissões e atuações. Entretanto é bom enfatizar que eles não estão no mundo em defesa de um modelo de religião ou de fé, mas para promover os valores do Reino e lutar pela justiça, pela vida e pela paz. São construtores de um mundo novo e a experiência que fazem de Deus na história favorece isso”, diz.

Membro da comissão de formação permanente do CNLB (Conselho Nacional do Laicato do Brasil) e atual presidente da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciência da Religião), Cesar afirma que os leigos vivem as dimensões batismais do próprio Cristo. “Como Ele, passam a ser sacerdotes, isto é, oferecem o seu viver e o seu fazer a Cristo. Passam a ser profetas, mas, ao modo de Jesus, denunciam as estruturas de opressão e anunciam a Boa Nova. No mundo, eles são construtores do Reino e iluminam e organizam a prática social, sem imposição, mas no dialogar e no promover”, acrescenta.

Marcia ressalta que o cristão se faz e se fortalece a partir da Igreja e da vida nas comunidades. Assim, fazendo parte de uma comunidade eclesial, ele é chamado a dar testemunho no mundo. “O leigo é chamado a ser atuante nos vários campos: social, político, público, profissional. Em suma, ele é chamado a ser protagonista onde estiver, seja na Igreja, seja fora dela”, explica.

Leigos cristãos na Igreja

A partir do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII e realizado entre 1962 e 1965, houve uma crescente valorização da vocação e da missão do leigo. No encontro, que reuniu bispos de todo o mundo e promoveu significativas mudanças na Igreja, os religiosos discerniram que não deveria haver mais uma relação de subordinação dos leigos ao clero, pois todos são Povo de Deus, distinguindo-se apenas pelo tipo de serviço ou ministério chamado a exercer nas comunidades.

Para o teólogo Cesar Kuzma, as conclusões a que chegaram os padres conciliares foram a grande novidade desse Concílio. “O Vaticano II resgatou uma tradição maior e definiu que ‘todos’ fazemos parte do Povo de Deus e, para tal, temos o batismo como sacramento de maior importância, que nos liga a Cristo e nos torna membros efetivos desse corpo. Existem diferenças de atuações e responsabilidades, mas todos são iguais em dignidade. Ninguém ocupa o centro, pois apenas Cristo é o centro e, ao redor dele, circulam todos os carismas e ministérios”, explica.

Segundo ele, essa mudança de postura levou o leigo a ter mais autonomia na sua missão. A visão de apenas atuar como colaborador, como se estivesse submisso a uma ordem, foi deixada para trás. “A partir do Vaticano II, o leigo será aquele que estende a sua vocação/missão em uma cooperação, dando algo que é de si e que lhe é próprio. Repito: ele é parte constitutiva na missão da Igreja, que não pode ser pensada sem ele”, ressalta.

As orientações dadas pelo Concílio Vaticano II refletiram também em documentos da Igreja e nas Conferências Episcopais Latino-Americanas, que trataram sobre o protagonismo e a promoção do laicato. A professora Marcia, do Itelsé, destaca alguns documentos marcantes da Igreja [você confere quais são eles na edição on-line do Em Companhia].

“A Igreja está no mundo para que a vida no mundo seja transformada e é a partir das comunidades que a transformação pode acontecer de forma mais inteira”

Marcia Regina de Carvalho, professora do curso de Teologia para leigos, em São Paulo

Sobre o Ano do Laicato no Brasil, Marcia acredita que este é um momento importante para reflexão, tanto para leigos como para a própria Igreja. “Muitas são as provocações que surgem a partir do Ano do Laicato. A começar pelo próprio reconhecimento da Igreja em ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva; a atenção aos solteiros, pois nem todos os leigos fazem opção pelo matrimônio ou pela vida religiosa; um olhar misericordioso e atencioso para os doentes, necessitados, viúvos, presidiários etc. Outra provocação é formar líderes competentes e coerentes com a fé e a vida, além de prestar atenção à comunicação, como meio de fazer chegar a mensagem de forma compreensiva e clara”, frisa.

Para ela, é necessário, também, alimentar-se de uma mística e espiritualidade mais comunitária. “O Papa Francisco nos alerta que a missão precisa do pulmão da oração, da mística, da espiritualidade, da vida interior. Outra provocação que este Ano do Laicato suscita é sobre o diálogo na sua mais inteira compreensão. Essas provocações incentivam o laicato a viver a fé e a vida cada vez mais na sua totalidade e no compromisso social. A Igreja está no mundo para que a vida no mundo seja transformada e é a partir das comunidades que a transformação pode acontecer de forma mais inteira”, destaca.

Na Companhia

“Como batizados, somos discípulos missionários de Jesus e, como leiga cristã, que tem muita fé em Cristo, eu participo ativamente da vida da Igreja. Eu entendo também que meu papel deve ir além da atuação na paróquia, devemos sair dos muros da Igreja. Acreditamos nisso e a paróquia incentiva nossa atuação como leigo consciente no seio da sociedade, transformando-a para melhor”, afirma Helena Teixeira Carvalho de Araújo, 45 anos.

Casada, mãe de dois filhos, ela participa ativamente de pastorais e grupos, além de ajudar os ministros ordenados que chegam à Paróquia Sagrado Coração de Jesus, no bairro de Águas Compridas, em Olinda (PE). Como cristã, Helena confia no protagonismo do leigo e afirma que as instituições católicas têm papel fundamental nesse processo. “Acredito que a Igreja pode fortalecer o protagonismo do leigo dando formação, investindo nos jovens, fazendo com que o leigo se conscientize de que ele é um membro e Cristo é o corpo”, ressalta.

Na paróquia jesuíta onde atua, Helena diz que os leigos são incentivados a celebrar a Palavra nas diversas capelas existentes. “Hoje, são 14 capelas mais a matriz. Em nossa paróquia, em alguns momentos, o leigo está à frente em determinada missão e o padre está lá, apoiando e valorizando a atuação do leigo. Para nós, isto é muito importante”, explica.

Para ela, a atuação do leigo avançou muito nos últimos anos. “Temos nosso papel reconhecido, principalmente porque os padres e os bispos perceberam que, sem a ajuda dos leigos, teriam dificuldades na evangelização. E, hoje, vemos tantos leigos desempenhando diversas atividades em nossa igreja. Por isso a importância do Ano do Laicato. Este é o momento de o leigo perceber o seu poder de evangelização onde estiver. Sua participação é fundamental como parte integrante da Igreja”, conta.

A jovem Micheli Vizentin Silva, 25 anos, concorda com Helena. Para ela, os cristãos leigos sempre tiveram sua importância na Igreja e no mundo. Porém o Ano do Laicato vem dar uma ênfase ainda maior sobre essa atuação do leigo como sujeito eclesial. “Nós somos capazes de desempenhar funções ativas e decisivas na Igreja e na sociedade local, de mudar realidades e questionar decisões que não condizem com o Evangelho de Jesus Cristo, desempenhando funções que mostrem os vários rostos do laicato”, afirma. Assim, segundo ela, para que isso aconteça de forma efetiva, é essencial delegar mais funções decisivas aos leigos e não somente considerá-los como meros executores. “Esse é um começo para se criar a consciência de corresponsabilidade dos cristãos leigos”, acredita.

“Nós somos capazes de desempenhar funções ativas e decisivas na Igreja e na sociedade local […]”

Micheli Vizentin Silva, 25 anos

Participante da paróquia jesuíta Santo Antônio, em Sinop (MT), há aproximadamente oito anos, Micheli conta que, como leiga, auxilia nos trabalhos com a Pontifícia Obra da Infância e Adolescência Missionária (IAM) e da Juventude Missionária (JM). Ela colabora também na liturgia e na pastoral catequética, além de articular os trabalhos com as juventudes da paróquia, por meio do Programa MAGIS Brasil – ação apostólica da Companhia de Jesus junto à juventude. “Com o intuito de integrar as juventudes da paróquia e compartilhar com os demais a espiritualidade inaciana, há pouco mais de três anos, implantamos o MAGIS. Juntamente com outros leigos e religiosos, planejamos diversas atividades com os jovens, como os Exercícios Espirituais em Etapas, tardes de espiritualidade, rodas de conversa, missas convivium, retiros quaresmais, além de auxiliar nos momentos de espiritualidade da comunidade”, explica.

Micheli conta também que há uma participação intensa de cristãos leigos na paróquia e no Programa MAGIS. E que os jesuítas sempre buscam dar autonomia a todos, instigando a corresponsabilidade e a criatividade dos leigos nos serviços da Igreja. “Isso é bom, pois visa a não ter pessoas dependentes dos religiosos que ali se encontram, mas que sejam capazes de, em sua liberdade e autonomia, trazer novos rostos para a Igreja e para a sociedade”, afirma. E acrescenta: “cristão não é cristão apenas quando se encontra na Igreja (templo). É preciso ser mais para os demais, contribuindo para um mundo melhor por meio de uma atuação que não busque ser grande para si mesmo, mas que nos chame a ser ‘sal da terra e luz do mundo’ a exemplo de Cristo”.

O desejo de ser ‘sal da terra e luz do mundo’ é o que também inspira a atuação de Ivone de Souza Leitão, 51 anos, coordenadora do SIES Manaus (Serviço de Espiritualidade Inaciana). “Somos chamados a ser sal e luz na vida das pessoas, onde quer atuemos”, afirma. Na obra jesuíta, ela atua como voluntária em um grupo com mais 10 pessoas. “Nós promovemos os Ciclos de Formação, os Retiros Quaresmal e de Advento nas paróquias, Jornada de Espiritualidade, além de acompanhar grupos de EVC (Exercícios Espirituais na Vida Cotidiana) e grupos paroquiais em finais de semana com formação e retiros espirituais nas paróquias e na Casa de Retiros Ir. Vicente Cañas, localizada na capital amazonense”, conta.

Além das atividades no SIES, Ivone tem fôlego para muito mais. Casada e mãe de três filhos, ela ainda participa da Paróquia Cristo Libertador, onde é ministra da Sagrada Comunhão – levando a Eucaristia aos doentes – e integrante da equipe de Batismo. “Junto com meu esposo, damos formação para pais e padrinhos e para jovens e adultos que não foram batizados na comunidade Imaculado Coração de Maria. Atualmente, também faço parte dos Leigos Missionários do Santo Nome de Maria – que desenvolve trabalhos junto a comunidades do interior”, conta.

Ivone conhece a Companhia de Jesus há 32 anos, pois, por muito tempo, os jesuítas foram párocos na paróquia que frequenta, incentivando o protagonismo dos leigos. “O SIES é um serviço desenvolvido por leigos com assessoramento de um padre. Nós somos responsáveis por difundir, acompanhar e vivenciar a espiritualidade inaciana. Nós ajudamos a levar essa experiência para todos, em qualquer lugar. É muito significativo, para mim, ajudar as pessoas a terem seus momentos de oração na busca pelo conhecimento interior e para poder ser mais para os demais”, declara.

A Igreja do Brasil retoma um caminho de valorização do laicato, que não se resume à colaboração com os ministérios ordenados ou uma vida de fé voltada para um devocionismo. Ela busca recuperar um protagonismo exercido e incentivado pelas Conferências Episcopais, pós Vaticano II [veja box sobre documentos sobre o laicato], em que o leigo participava ativamente em uma Igreja mais horizontal, mais dialogal, procurando ser sinal, agente de mudança na sociedade. Os testemunhos que lemos, acima, nos revelam que há ainda muito caminho pela frente. A partir da experiência do passado e confrontando com o presente, podemos corrigir os erros e sugerir mudanças nas posturas e relações entre os ministros ordenados, religiosos e leigos. Além de propor uma espiritualidade própria, incentivada para o protagonismo na sociedade. Sempre colocando Jesus Cristo como o centro, o modelo de vida e serviço, sabedores de que Ele é quem nos capacita e nos fortalece para colaboração na construção do Reino de Deus. “Para nós, cristãos leigos, é preciso uma vida de oração. Temos que mergulhar na pessoa de Cristo, temos que nos apaixonar para que as outras pessoas se apaixonem também. Temos que falar com o coração, não só com palavras, mas em gestos e atitudes. Nossa fé deve ser refletida na nossa vida”, finaliza a pernambucana Helena.

Essa entrevista foi publicada na 44ª Edição do informativo Em Companhia (Maio 2018). Quer ler a edição completa? Então, clique aqui!

 

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