O Dia Mundial do Refugiado, em 20 de junho, é um chamado para sermos solidários com as pessoas forçadas a deixar seus países, suas casas, seus empregos e até suas famílias para trás, na busca por uma vida mais digna. Dados divulgados este ano pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) revelam que 79,5 milhões de pessoas estavam em situação de deslocamento forçado no mundo até final de 2019. Isso significa que 1% da população mundial está deslocada; 80% delas em países ou territórios afetados por grave insegurança alimentar e desnutrição (Relatório Tendências Globais).
Entendemos o que é migração?
“A migração faz parte da história da humanidade”, relata o guia sobre migração produzido pelo Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), o portal MigraMundo e a organização FICAS. O documento, que também conta com apoio da Fundação Avina e do ACNUR, ressalta que a migração é um fenômeno social observado “desde os primórdios, em maior ou menor intensidade, enriquecendo e construindo a sociedade com novas dimensões e aspectos culturais, sociais e humanos”. Os fluxos migratórios, independentemente de seus motivos, também podem ser entendidos como uma ampliação da liberdade de circulação – um direito respeitado pelas constituições de vários países.
Seja na luta por melhores condições de vida, seja em pedidos de refúgio em decorrência de situações de perseguição, seja em conflitos sociais ou econômicos, seja em desastres naturais, ou em casos de apatridia, os migrantes desempenham papel significativo de contribuição aos países de destino. Entretanto, para isso, demandam ações de acolhida, proteção, promoção e integração que, nem sempre, são entendidas como um fenômeno social enriquecedor.
Frequentemente, presenciamos ou tomamos conhecimento de ações e de discursos xenofóbicos que desrespeitam pessoas e costumes vindos de outros países. Nesses casos, a questão migratória é encarada como um elemento de “ameaça” à cultura ou à economia de um país. “Esse enfoque distorcido e equivocado está por trás de uma série de políticas migratórias cada vez mais restritivas – tanto no Brasil como em outros países”, explica o guia do IMDH, do MigraMundo e da FICAS. O documento aponta que essas ações têm consequências sérias, como tornar um ambiente propício à exploração da dignidade dos migrantes ou perigosos para que eles possam se estabelecer.
Contextos globais e nacionais
Segundo estimativas do Relatório de Migração Global 2020, divulgado em novembro de 2019 pela Organização Internacional para Migrações (OIM), o número de migrantes internacionais totaliza cerca de 272 milhões de pessoas. Na primeira edição do documento, publicada no ano 2000, os migrantes internacionais eram 150 milhões, ou seja, em quase 20 anos, esse índice teve um aumento de 122 milhões de pessoas. Segundo o mesmo relatório, os principais destinos dos migrantes internacionais são Estados Unidos, Alemanha, Arábia Saudita, Rússia e Reino Unido.
Sensível a esse cenário, a Companhia de Jesus atua em prol de pessoas migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio no mundo desde 1980. Na época, “o então Superior Geral da Companhia de Jesus, padre Pedro Arrupe, compreendendo o desafio global dessas pessoas, criou na Cúria Geral, em Roma (Itália), a sede do Serviço Jesuíta a Refugiados (Jesuit Refugee Service – JRS). Atualmente, esse serviço está presente em mais de 50 países, sendo denominado JRS (Serviço Jesuíta a Refugiados) ou SJM (Serviço Jesuíta a Migrantes)”, ressalta Pe. Agnaldo Junior, diretor nacional do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados Brasil (SJMR).
Ligada à Conferência de Provinciais na América Latina e Caribe (CPAL), a Rede Jesuíta com Migrantes (RJM) está organizada de acordo com os fluxos migratórios e as particularidades de seus próprios contextos sociopolíticos:
O Serviço Jesuíta aos Refugiados, mais conhecido por sua sigla em inglês JRS, serve a região da Colômbia e seus vizinhos (principalmente, Venezuela e Equador); o Serviço Jesuíta aos Migrantes – CARIBE, que se preocupa, especialmente, com os migrantes entre a República Dominicana e o Haiti; e o Serviço Jesuíta aos Migrantes – SUR, que atende os fluxos de migrantes forçados pela costa do Pacífico Sul-Americano (Peru, Bolívia, Chile e Brasil) até chegar ao Chile ou tentar passar para terras brasileiras.
Pe. Agnaldo Junior destaca, no trabalho realizado internacionalmente pela Companhia de Jesus, a compreensão com o caráter forçado de muitos deslocamentos, desde como consequência de temores até perseguições por causa de raça, religião, nacionalidade, pertença a algum grupo social, opinião política, ou de uma violação grave e generalizada dos direitos humanos nos países de origem dessas pessoas.
O contexto brasileiro, considerando o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais divulgado em 2019, registra 774,2 mil imigrantes no período de 2010 a 2018. Haitianos, venezuelanos e colombianos são as três principais nacionalidades que compuseram os grupos de imigrantes no País no ano de 2018. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, haitianos e venezuelanos tiveram o maior número de carteiras de trabalho emitidas.
A trajetória dos jesuítas no cuidado com a questão migratória no País foi explicada, resumidamente, pelo diretor do SJMR Brasil. Em 2003, mediante uma parceria firmada entre a então Província Meridional dos Jesuítas (região sul do Brasil), o ACNUR e o Governo Federal, foi implementado o Programa Brasileiro de Reassentamento Solidário de Refugiados. Quase dez anos depois, em 2012, nasceu o segundo projeto dos jesuítas nessa área, o Pró Haiti, com a mobilização de uma equipe em Manaus (AM) para colaborar com a Pastoral do Migrante local na recepção e assistência a imigrantes haitianos. Outra iniciativa motivada por estudantes jesuítas, religiosas da Congregação Filhas de Jesus e alguns leigos deu origem, em novembro de 2013, em Belo Horizonte (MG), ao Centro Zanmi. Finalmente, com a união desses projetos, surgiu, em 2017, a rede do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) que, no ano seguinte, inaugurou escritórios em Boa Vista (RR) e Manaus, visando ao atendimento das demandas relativas ao fluxo massivo de venezuelanos.
O ACNUR considera o fluxo de refugiados e migrantes venezuelanos como o segundo maior do mundo, sendo o primeiro lugar ocupado pelos sírios. O caráter de urgência levou o SJMR, em 2019, a expandir os cuidados e construir sua sede nacional em Brasília (DF), com o objetivo de coordenar as ações dos demais escritórios e atuar, diretamente, com os órgãos do governo e as organizações internacionais ligadas à questão.
Serviço Jesuíta para Migrantes e Refugiados Brasil
Hoje, o SJMR é composto por cinco escritórios no Brasil: Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM), Boa Vista (RR) e Brasília (DF). Segundo Pe. Agnaldo Júnior, as atividades são sempre guiadas pelo acompanhamento, pelo serviço e pela defesa das pessoas deslocadas à força, “em busca de promover e proteger a dignidade e os direitos de migrantes e refugiados vulneráveis no Brasil, acompanhando seu processo de inclusão e de autonomia, incidindo na sociedade e no poder público para que reconheçam a riqueza da diversidade humana”. O diretor nacional ressalta ainda que os trabalhos se desdobram nos eixos Proteção, Meios de vida, Integração, Incidência e Pastoral:
Proteção
A proteção se baseia na acolhida e na escuta das pessoas que chegam, e no entendimento do que estão necessitando. Segue com o apoio à regularização migratória e demais documentos que os migrantes e refugiados necessitam para estar com sua situação migratória em dia. Acompanha também a proteção jurídica e a proteção social.
A primeira busca promover acesso à informação e suporte para a regularização migratória e a obtenção de documentos, bem como o intermédio de processos consulares. Além disso, auxilia no processo de solicitação de refúgio e autorização de residência temporária.
O segundo eixo da proteção se dá via assessoria jurídica para a regularização migratória, promovendo o ingresso e o acompanhamento de demandas judiciais e extrajudiciais nas áreas civil, criminal, consumerista, de família e trabalhista.
Quanto à proteção social, ela oferece atendimento e acompanhamento sociofamiliar e psicológico, fazendo encaminhamentos a serviços de assistência social, saúde e educação.
Também trabalha com manejo de casos, analisando as situações de vulnerabilidade para a concessão de alimentos, roupas e itens de higiene básica.
Meios de vida
O eixo de meios de vida dedica-se à inserção laboral dos migrantes, refugiados e solicitantes de asilo. Os atendidos são preparados para o mercado de trabalho por meio de cursos profissionalizantes. A assessoria e o intermédio de processos seletivos são oferecidos com a elaboração e impressão de versões em português de currículos, mantendo um banco de dados com currículos dos atendidos, procurando vagas, fazendo sessões de sensibilização de empresas, além de rodas de conversa sobre direitos trabalhistas aos migrantes, entre outras atividades. É importante ressaltar que, nesse eixo, existem atividades específicas a grupos mais vulneráveis, como mulheres, trabalhadoras do sexo, população LGBTI+, indígenas etc.
Integração
A vertente de integração aprofunda-se na questão da cultura e do idioma. Organizam-se e ofertam-se cursos de língua portuguesa e promovem-se ações de integração sociocultural aos atendidos pelo SJMR, com a finalidade de incluí-los melhor na sociedade brasileira. Cursos de orientação cultural, oficinas e workshops em que há uma troca de experiências entre migrantes e sociedade local são exemplos dessa vertente de ação da instituição.
Incidência
A frente de incidência conduz práticas de advocacy para que as normas e políticas públicas favoráveis aos migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados sejam mantidas e ampliadas também. Além disso, o eixo se relaciona com o fortalecimento do escritório por meio da articulação com os governos municipais, estaduais e federal, as organizações internacionais, às outras entidades da sociedade civil, a academia e a população de modo geral.
Hoje, o SJMR participa de vários grupos de trabalho com tema migratório, fóruns, comissões de combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas. Participa também da Rede Advocacy Colaborativa (RAC), em Brasília, que acompanha as pautas, no Congresso, relacionadas às áreas de migração, refúgio e combate ao tráfico de pessoas. Além de integrar a Plataforma Regional de resposta aos venezuelanos (R4V), faz parte da Red Jesuita com Migrantes de América Latina e Caribe (RJM-LAC).
Pastoral
Como obra de inspiração cristã e inaciana, o SJMR buscar servir as pessoas com base em uma visão integral do ser humano, cuja dimensão espiritual não pode ser negligenciada. Trata-se de uma parte importante que dá sentido às demais áreas da vida. O SJMR acompanha as pessoas migrantes, refugiadas e apátridas, independentemente de nacionalidade, cor, raça, religião, gênero ou idade.
A área do acompanhamento pastoral desenvolve-se por meio das visitas solidárias às famílias dos migrantes e refugiados, de celebrações em datas festivas, na sensibilização das comunidades e paróquias sobre a acolhida cristã aos irmãos de outras nacionalidades e diversas campanhas para integrar migrantes e população local em busca do mesmo objetivo: a coexistência pacífica e fraterna.
Outras atividades importantes desenvolvidas pelo Serviço Jesuíta mencionadas por Pe. Agnaldo foram a interiorização de venezuelanos em parceria com a Operação Acolhida; o Projeto de Coexistência Pacífica; o Projeto Acolhe Minas; o Mulheres Caimbé; e as ocupações. É possível se informar para conhecer ou ajudar essas iniciativas por meio do site do SJMR Brasil (sjmrbrasil.org).
As vivências de quem deixou seu país
Colaborador do SJMR e também migrante, o senegalês Serigne Bamba Toure desenvolve projetos de conscientização contra o racismo no ensino fundamental e educação sobre a cultura africana senegalesa. Ele também trabalha em parceria com a organização não governamental (ONG) África do Coração – formada por migrantes que desejam transmitir uma nova imagem da África no Brasil, demonstrando a pluralidade dos 54 países e das inúmeras culturas presentes no continente.
Serigne manda um recado para quem sente identificação com a causa e para quem se interessa em colaborar: “ajuda é sempre bem-vinda e peço também ao povo brasileiro que tenha sempre paciência e compreensão com os migrantes porque estamos saindo de nossos países para uma nova cultura, que tem costumes, comidas e integração diferentes. Isso ajuda bastante”.
A venezuelana Gleybis Yesmin Luna Zambrano declara o amor pelo seu país e conta que, devido à situação política e econômica atual do lugar, não conseguiu encontrar as condições necessárias para dar assistência à saúde de sua filha. “Precisei vir ao Brasil para tentar trabalhar e enviar dinheiro para que ela continuasse o tratamento de saúde dela”, diz. Além disso, Gleybis lembra que o ex-marido, militar do governo, a submetia à violência de gênero: “sofri violência física, psicológica e ameaça de morte”. A convite da irmã, que já havia migrado para o Brasil, ela encontrou aqui uma chance de se livrar das violências vividas e buscar acesso a medicamentos e alimentação adequada. Ao chegar em Boa Vista, a situação não foi fácil para a venezuelana: “sofri xenofobia, discriminação e não sabia o que fazer, pois, se regressasse para Venezuela, voltaria para toda a situação descrita, se ficasse no Brasil, enfrentaria discriminação”.
Ámbar González Blanco, também venezuelana, tem sua história de vida marcada pelo adoecimento. Formada em Engenharia de Sistemas, abandonou 18 anos de carreira universitária em razão da saúde dela e do filho de 10 anos, que, assim como a mãe, precisou lutar contra o câncer. “Depois que chegamos ao Brasil, nós dois conseguimos estabilizar a saúde. Também trouxemos parte de nossa família que estava na Venezuela”, relata Ámbar, acrescentando: “Agora, nós estamos numa família grande, 16 pessoas, e achamos que estamos muito, muito bem, muito estável aqui”.
A experiência pessoal de Ámbar com os brasileiros foi de acolhimento, o qual ela agradece muito. A venezuelana reconhece o trabalho realizado pelo SJMR em Roraima e em Brasília: “um apoio de muita importância na saúde mental e estabilidade para nós”. Ela e a família conheceram o SJMR há cerca de dois anos, quando precisaram de apoio com alimentação e com trâmites legais. Desde então, ela sente que a instituição “tem sido uma base para nós, como família, ficarmos estáveis. Em nossa vida como venezuelanos organizados, eles são nossa segurança, buscam apoio para que tenhamos uma voz como imigrantes”.
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